Para começar, uma definição vinda de Kevin Werbach: “Games são coisas criadas sistemática, artística e tecnologicamente com o propósito de serem divertidos” [1].
Os games enquadram-se num amplo setor: a indústria do entretenimento. Também fazem parte dessa área outras mídias (que aliás dialogam muito com os games) como filmes, séries de TV, brinquedos, dentre outros. O que une produtos tão distintos sobre um mesmo guarda-chuva? Uma resposta ligeira: a diversão. Isto é, a ideia de que são coisas feitas para divertir, como disse Kevin Werbach. Quem adentra na indústria do entretenimento, portanto, deve possuir uma boa definição do que é diversão.
Pois bem: o que é “diversão”? Quando algo é divertido? Existe diferentes tipos e níveis de diversão? E o que mais interessa em termos de aplicação para você leitor? Como fazer jogos divertidos?
Filosofia aplicada ao game design
Wittgenstein, filósofo austríaco do século XX, famoso pelas análises lógicas da linguagem, estipulou a indefinibilidade dos jogos [2]. Curiosamente, Wittgenstein (que definiu a linguagem como um conjunto de jogos verbais) assumiu não saber ao certo o que era um jogo ou porque pessoas jogavam. Por sorte, outros filósofos responderam ao austríaco. Dentre eles Bernard Suit [3], que definiu que jogos são atividades voluntárias que implicam em mergulhar em desafios desnecessários, mas interessantes. Ao investigar por que jogos são divertidos, Suit, destaca que a diversão acontece quando de livre e espontânea vontade nos engajamos em problemas que não precisávamos responder. Nesse tipo de problema, a solução é menos importante que o engajamento; a motivação em tentar resolvê-los é maior.
Já Johan Huizinga [4], filólogo (um historiador das ideias) e autor do célebre “Homo Ludus” (1938), defende que os jogos e a diversão são o germe da cultura. Fazer algo além de comer e reproduzir, e algo muitas vezes banal no quadro maior das coisas (como jogar no smartphone), nos torna humanos. A diversão seria um fator humanizante formado por quatro aspectos:
- Play – Divertir-se implica em escolher divertir-se; isto é, agir livre de coações ou obrigações. Isso está associado a brincar de forma solta usando a imaginação. Você pode pegar uma bola Wilson e jogar vôlei, ou fazer um roleplaying estilo “Náufrago”, de Tom Hanks;
- Game – Regras e objetivos muitas vezes estão implicadas na diversão. Regras restringem suas ações e objetivos são a consequência que elas devem gerar.
Obs: Game e Play são dois aspectos mais complementares que antagônicos, hein? Play está mais relacionado a explorar sem plano um território, e Game está mais relacionado a estruturar um mapa, mas ambos se baseiam que estar no território é divertido de alguma forma; - Ludus – Faz-de-conta. Lembra que Suit falou de imersão? Pois bem. Quem se diverte adentra em outro estado de realidade mais imaginativo onde as coisas podem se transmutar em outras. Uma vassoura pode ser um instrumento para jogar Quadribol e o cachorro da família, um hipogrifo. Huizinga chamou esse efeito cognitivo de ruptura momentânea com a realidade prosaica de “Círculo mágico”. Quando pessoas estão jogando alguma coisa estão dentro do Círculo Mágico do jogo. Isso quer dizer que, para elas, certas regras, objetivos e papéis valem, e não as regras, objetivos e papéis da realidade prosaica (que estão do lado de fora do círculo);
- Alea – Raiz da palavra aleatoriedade. O fator Alea nos lembra que a diversão deve ter uma caráter imprevisível. Me refiro ao suspense e à expectativa quanto ao final, mas também as surpresas (agradáveis ou não) durante o processo.
Resumindo até aqui: algo é divertido quando voluntariamente queremos nos envolver visando a experiência em si (que de conter regras, papéis e surpresas).
Obs: Quer saber mais sobre este tópico? Cheque a referência [5].
Game designers precisam manjar de motivação humana, sim
Tá, ok. Até agora falamos sobre quando algo é divertido ou não. Mas e por que as pessoas se engajam em atividades divertidas? Elas poderiam ignorar essa coisa de problemas com regras, fantasia e surpresas para simplesmente viver o dia-a-dia, pagar as contas e esperar o fim-de-semana para ficarem em casa descansando, não é mesmo?
Aí entra um tópico interessante. Como já sugerido por Suit (ao falar no aspecto voluntário do envolvimento) diversão tem tudo a ver com motivação humana. Você precisa entender porque algumas pessoas fazem o que fazem de bom grado, sem serem forçadas. Afinal, se são forçadas a jogar algo então aquilo deixa de ser um jogo (um atleta profissional tem seu salário independente do desempenho no esporte, logo ele dificilmente acha divertido perder partidas).
Em suma, se você quer criar jogos divertidos, precisa entender a hierarquia de motivadores das pessoas que os experimentarão para tentar satisfazê-las.
IMPORTANTE: Já vi acontecer muito erro na indústria de games brasileira quanto aos idealizadores dos jogos (produtores e designers, principalmente) que criaram jogos que apenas eles gostariam de jogar. Isso revela uma falha imensa em orientação às motivações de seus públicos-alvo! Não fizeram aquelas perguntas clássicas: “O que eu faço?” e “Como o que eu faço pode interessar a outras pessoas ao ponto de até pagarem por isso?”.
Pois bem, falemos de motivação humana. Vou simplificar bastante e possivelmente cometer algumas grosserias epistemológicas aqui, ok? Mas para o propósito deste artigo podemos fazer 2 distinções elementares sobre esse assunto:
- Motivação pode ser subtrativa ou aditiva [6]. Uma pessoa está motivada subtrativamente quando ela deseja diminuir algum mal-estar, e aditivamente quando age de forma a acrescentar algum benefício. Você encontrará em alguns manuais de Psicologia os termos “reforço negativo” e “reforço positivo” para esses fenômenos. E em outros manuais lerá que o fundamental da motivação é aliviar tensão e stress (sendo assim subtrativa) ou obter prazer (aditiva). Yu-Kai Chou [7], o grande nome atual da Gamification, usa os termos “Black hat motivation” para a subtrativa e “White hat motivation” para a aditiva (e aconselha a dosar com cuidado a primeira e não abusar da segunda).
- Motivação pode ser intrínseca ou extrínseca [8]. Há mais de uma forma de entender isso mas eu gosto desta: um motivador extrínseco é arbitrário, externo e funciona bem para atividades mecânicas. Ex.: Você obtém moedas ao matar o monstro. Já os motivadores intrínseco mexem mais com aspectos individuais e funcionam melhor com atividades criativas. Ex.: Você mata o monstro e ganha uma medalha que não trará benefício nenhum em termos objetivos, mas subjetivamente lhe trará um senso de realização e a possibilidade de ser respeitado pelos outros jogadores.
Repito: motivação humana é um tema bem mais vasto que isso. Penso em autores como Rogers, Maslow e Frankl [9]. Mas, para nossos propósitos aqui, essas duas distinções acima servem como bom começo.
Método em 3 passos para games mais divertidos
Seu trabalho como game designer é partir de conceitos validados (comercial e tecnicamente) para criar games. A maior parte do tempo você passará esmiuçando regras, atributos, valores e afins. Tudo isso pode parecer muito lógico e matemático (e é), mas há um aspecto do Game Design que você nunca pode perder de vista: você quer conquistar os corações dos jogadores. Você quer proporcionar momentos divertidos.
Eis aí um método em três passos, desenvolvido por mim:
1. Conheça sua audiência
Afinal, diferentes personas deverão achar divertidas coisas diferentes. Para conhecer bem a audiência, recomendo um modelo que aplico bastante: a tipologia de jogadores de Andrze Marczewski’s (2016). Seriam eles:
- Conquistadores (que desejam a maestria e posse de itens, evolução. Adoram fazer metajogo e tudo que remeta a estratégia);
- Brincantes (que só querem se divertir e adoram motivadores extrínsecos. Se aplica aos casual gamers, mas também ao hardcore gamer que diz “Ah, hoje eu quero só dar uma jogadinha de leve. Sei lá, só umas 6 horinhas de LoL de boas”);
- Socializadores (acima de tudo querem fazer amigos. Ah, os jogos feitos para redes sociais mostram que tem muita gente nessa, sim);
- Filantropos (jogam pensando em cumprir algum propósito maior, como melhorar o jogo ou ajudar os outros. Pode soar incrível, mas tem gente que joga, sim, pensando de forma altruísta. Essas pessoas são ótimos beta-testers!);
- Disruptores (pode chamá-los de ‘espíritos de porco’. Jogam porque adoram zoar os outros, achar falhas e reclamar. Brasileiros tem bem essa fama em MMOs, viu?);
- Espíritos livres (ao jogar gostam de agir com autonomia e criar coisas. Pensei no Minecraft, e vocês?).
2. Selecione elementos apropriados
Levando em conta essas diferentes motivações de quem vai experimentar seu jogo, você precisa distribuir nele os “fatores de diversão” e evitar o que chamo de “fun killers” [11]. Constam como fatores de diversão (que devem ser inseridos estrategicamente):
- Ofereça apenas desafios resolvíveis;
- Senso de progresso. Mostre como o jogador está evoluindo;
- Promova competição;
- Dê chances do jogador exercitar habilidades de difícil aquisição;
- Dê margem para escolhas estrategicamente relevantes;
- Brinque com papéis, representações de fantasias;
- Faça os jogadores colaborarem entre si;
- Dê territórios para serem livremente explorados;
- Crie surpresas;
- Ofereça itens colecionáveis e estimule a ambição de completar coleções;
- Deixe os jogadores criarem coisas inesperadas, jogarem de forma imprevista por você;
- Dê coisas (e personagens) para eles destruírem sem dó;
- Crie um sistema de incentivo quantitativo baseado em motivadores extrínsecos em sua maioria;
- Envolva os com personagens em uma história cativante;
- Dê um final ao jogo que os faça quererem jogar novamente, talvez mudando as coisas para experimentar novidades.
Agora os tais “fun killers” que devem ser evitados a todo custo:
- Micro-gerenciamento. Faça com o que os jogadores precisem fazer muitas pequenas tarefas para obter poucos resultados divertidos;
- Estagnação. Bote os cenários chatos ou num esquema de progressão maçante;
- Insira desafios de resolução impossível para o nível de habilidade presente do jogador;
- Ao invés de história, coloque eventos aleatórios mal acabados;
- Torne todo o jogo previsível.
3. Balanceamento e melhorias
Ok, ok… Digamos que você analisou bem as motivações de sua audiência (pelo modelo de Marczewski ou outro que você preferiu) e, em seguida, elencou quais ‘fatores de diversão’ usar e como evitar os ‘fun killers’. Mas, ainda não acabou. Você só criou e detalhou o conceito do jogo até agora. No papel ele pode estar divertido, mas você precisa balancear, testar e rebalancear para garantir uma experiência divertida fora da blueprint.
Um bom modelo que ajuda a checar se o balanceamento está fazendo do jogo uma experiência melhor é a “Flow Theory” [12]. A síntese da teoria pode ser vista neste gráfico:
O “canal de fluxo” é o espaço entre o tédio e a ansiedade em que ocorre a diversão, isto é, a experiência de puro entretenimento onde a pessoa mergulha na diversão. Para projetar diversão, portanto, é preciso entender o nível de habilidade do jogador (eixo X) e oferecer desafios de dificuldade adequada (eixo Y) para assim mantê-lo motivado. Alguns jogos são “hardfun”: estão no canal de fluxo, porém mais perto do perímetro de ansiedade. Ex.: games de estratégia com metajogo competitivo, como League of Legends. Outros jogos são “easy fun”: estão no Canal de Fluxo, porém mais próximos do perímetro de tédio. Ex.: games casuais para jogar na fila do banco.
IMPORTANTE: Não dá pra ser divertido o tempo todo porque, então, o jogo geraria até mesmo fadiga. Por isso o percurso no Canal de Fluxo deve ser uma curva cheia de altos (momentos de um pouco mais de excitação e ansiedade para despertar) e baixos (momento de calma e tédio para descansar).
Algumas questões extras
Como avaliar a diversão? Dá pra quantificar? A maneira mais elementar é a observação direta. Procure em específico por sinais de engajamento, como interagir espontânea e repetidamente com o objeto. E, claro, sinais emocionais de alegria, surpresa. Se puder usar software de reconhecimento de expressões faciais, como o Noldus, para quantificar estados emocionais seria perfeito (mas caro).
Cuidado com entrevistas e questionários. Eles medem diversão indiretamente, de forma mediada pela fala. O avaliado pode dizer que se divertiu sem de fato ter ocorrido isso. Ou, quem sabe, falar que foi chato ou difícil, mas na prática estava curtindo e só reclamou porque, sei lá, reclamar também pode ser divertido. No mais, para avaliar diversão aposto mesmo em observação direta. Em sentir as pessoas e a experiência junto com elas. Procure ou crie protocolos adequados de observação que te dirão ao certo o que procurar como indicador. Por exemplo, se você for observar gente jogando Tetris, então, “Ficar quieto mexendo no celular” é um indicador de diversão; ao passo que “Gritar e gesticular muito enquanto demonstra algo como ira” é um indicador de diversão para games como Call of Duty.
E jogos educativos? Serious games? Gamification? Precisam ser divertidos? Jogos educativos costumam ser chatos. Sinto muito, é a verdade. Mas isso não quer dizer que sempre serão. É uma questão de bom design. Vez por outra o mero uso de estratégias lúdicas, mesmo que não sejam as melhores, provoca uma quebra no cotidiano entendiante de organizações, o que as tornam magicamente divertidas. Sobre isso, leia! O fato é que jogos educativos, serious games e estratégias de gamification precisam sim ser motivadores, interessantes. Precisam ser divertidos para serem bons.
O fato de ser divertido perde o caráter de seriedade da mídia, principalmente em se tratando de jogos sérios? Existe uma relação pouco conhecida no senso comum entre seriedade e diversão. Paradoxalmente, quem se diverte com algo está levando aquele objeto a sério. É só ver como crianças ficam imersas em roleplayings e adultos até brigam feio por futebol. Um jogo, se bem feito, é respeitado e levado a sério. Então, ele é ao mesmo tempo divertido e sério.
Para concluir, exercícios:
- Pegue o último game que você passou horas se divertindo e identifique seus fatores de diversão. Explique como funcionaram bem com você, ou como falharam. Faça o mesmo com os “fun killers”;
- Selecione um game completamente não divertido para você. Agora jogue-o. Preste atenção em como se sente com a experiência. Por mais desagradável que seja, jogue-o por ao menos 20 minutos. Algo mudou? Como se sentiu? Que tipo de jogador é você (segundo o modelo de Marczewski) e para quais tipos aquele jogo foi feito? O que você faria para torná-lo divertido?
- Observe alguém se divertindo enquanto joga. Que sinais ela dá que está apreciando o jogo? Pense em qual seria a melhor forma de avaliar sua diversão além de observar. Você o entrevistaria? Faria uma dinâmica de grupo? Faria um questionário impresso ou online?
Por hoje é isso pessoal.
Abraços e até mais!
Referências
[1] Kevin Werbach, no curso “Gamification” no Coursera, aula 1.3.
[2] Lwidig Wittgenstein, em , Philosophical Investigations (1953)
[3] Bernard Suit, The Grasshoper” (1978)
[4] Johan Huizinga, “Homo Ludus” (1938)
[5] “A Theory of Fun”, de Ralph Koster. Pegue a versão “10 years later”!.
[6] Para saber mais sobre reforçamento positivo e negativo: https://www.youtube.com/watch?v=Ta4GS_-Umok
[7] Chequem o site de Yu-Kai Chou http://yukaichou.com/
[8] Motivação pode ser intrínseca ou extrínseca: http://www.scielo.br/pdf/%0D/prc/v17n2/22466.pdf
[9] O conceito de motivação em Psicologia: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452005000100012
[10] Andrze Marczewski’s (2016). http://www.gamified.uk/
[11] “Game Design Workshop” de Tracy Fullerton (2014).
[12] “Flow Theory”, Mihaly Csikszentmihalyi. https://www.ted.com/talks/mihaly_csikszentmihalyi_on_flow?language=en
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Artigo publicado originalmente em: http://www.fabricadejogos.net/posts/operacionalizando-o-conceito-de-diversao-para-game-designers/