Neste artigo falarei sobre o Sesame Credit, o sistema de crédito social chinês que mistura gamificação, Big Data e polêmica. Muita polêmica.
Mas antes, me diga: você já assistiu algo da série “Black Mirror”?
Um prenúncio do futuro?
“Nosedive” é o episódio 1 da 3ª temporada dessa aclamada série de ficção científica que aborda problemas decorrentes do uso da tecnologia. O enredo de “Nosedive” gira em torno do sonho de Lacie – nossa sorridente, mas triste protagonista – de comprar uma casa em uma vizinhança badalada.
Mas para isso, Lacie precisa aumentar seu social score, que varia de 0 a 5. Lacie estacionou em 4.2 e precisa de ao menos 4.5 para realizar seu sonho. A melhor forma de cumprir essa árdua façanha é agradar pessoas que tenham notas próximas a 5. Os likes dessas celebridades contam muito mais que dos “sub-4” com quem Lacie está habituada a conviver, como seu irmão rebelde que despreza o social score.
Claro que as coisas não saem como planejado, e por isso, temos uma história perturbadora onde vemos, por meio de um espelho negro e quebrado, um reflexo do mundo em que vivemos. Ou uma antecipação de um futuro ainda mais sombrio. Lacie existe apenas para aparentar estar feliz, e com isso ganhar pontos que talvez um dia a levem para a verdadeira felicidade.
Se não viu ainda, recomendo “Nosedive” logo após ler este artigo, ok? Trailer:
Mas e se eu disser para você que algo muito parecido com “Nosedive” já está acontecendo há cerca de 2 anos? E está para mais de 300 milhões de pessoas que estão envolvidas em um experimento social sem precedente relacionado a crédito financeiro.
Definição de “Crédito Social”
Imagine que seu banco precisa decidir se você recebe um empréstimo. A forma tradicional da instituição fazer isso é se basear em seu perfil social e histórico financeiro. A nova forma de fazer isso é se basear nesses dois fatores e também em que livros você compra na Amazon, que produtos encomenda via Mercado Livre, que notícias compartilha no Facebook, quantas horas passa por dia zanzando em sites e games, onde faz check-in e por aí vai.
Os sistemas de crédito social podem levar em consideração os comportamentos de consumo, preferências, hábitos pessoais. E até mesmo o histórico de seus amigos e suas opiniões políticas expressas na internet podem contar, como é o caso do Sesame Credit. Tudo isso para tapar lacunas de dados dos sistemas tradicionais de crédito, possibilitando uma avaliação mais precisa de seu perfil e com isso uma resposta mais assertiva a “Quanto crédito você merece?”.
Um negócio da China!
A China é um país politicamente peculiar. Definido por muitos como um “socialismo de mercado”, portador de um patrimônio cultural milenar pautado no Confucionismo, uma filosofia centrada na ordem social, na disciplina e na obediência à autoridade.
Ocorre que o Partido Comunista Chinês, no poder desde a Revolução de Mao Tse-Tungl, em 1949, resolveu inovar tecnologicamente integrando gamificação e big data. Como resultado, criou o sistema de crédito social, chamado Sesame Credit, cujo os testes começaram em janeiro de 2016 e envolvem hoje cerca de 300.000.000 de pessoas.
O Sesame Credit foi tema central do XIX Congresso Nacional do Partido, ocorrido em outubro de 2017, onde o presidente Xi Jinping anunciou uma “nova era comunista” e centralizou mais poder em suas mãos.
Na China, apenas uma pequena parcela da população tinha acesso a crédito. Com o Sesame Credit isso mudou, o que explica o porquê da maior parte da população apoiar a invenção do Partido Comunista. Tanto é assim, que os atuais usuários são todos voluntários; e cerca de 100.000.000 de chineses publicaram espontaneamente seus scores nas redes sociais.
O Sesame Credit não é uma ruptura. Contudo, é um upgrade. Pode ser visto como uma versão digital do Dang’an (o sistema de registros públicos instaurado pelos comunistas). O Partido também já monitorava bastante a vida online da população. Ao invés de YouTube, os chineses têm o YouKu, e ao invés de Twitter, o Sina Weibo. Ambas redes sociais controladas pelo Partido.
Mas a inserção de tanta gente no programa só foi possível com a ajuda de grandes corporações. Dentre elas, o Alibaba, de Jack Ma, bilionário que defende que o Big Data é a chave para o Socialismo funcionar. E não se enganem: aqui no Ocidente, corporações como o Facebook já pensaram em algo parecido, como exposto mais a frente.
Por ora, o Sesame Credit está em fase de testes. O Partido anunciou, contudo, que em 2020 ele será obrigatório para toda a população. O que dá cerca de 1,25 bilhões de usuários. E, numa fase subsequente, também avaliará empresas e localidades como um todo. Esse monstruoso volume de dados resultante é ou não é o sonho de qualquer Data Scientist?
Descrição da Mecânica de Incentivos
Vamos dar uma olhada na interface do Sesame Credit. Por ora, ele funciona como um aplicativo oficial do Partido, baixável para smartphones e acessível também via PC. Com a ajuda do Google, traduzi os ideogramas, o que me permitiu descobrir algumas coisas como prêmios ganháveis e sistema de pontuação.
Na imagem acima, o número 729 indica a pontuação daquele cidadão a 28 de janeiro de 2015. A pontuação varia entre 350 e 950 e é classificada mediante a seguinte escala de 5 faixas, de “Ruim” a “Perfeito”:
“Tá, mas que prêmios eu posso ganhar?”
Quanto mais pontos o cidadão tiver, mais vantagens relativas a crédito ele receberá. Exemplos de vantagens: prioridade na hora de alugar carros, negociação de empréstimos, parcelamento de despesas online, e por aí vai. O Partido está continuamente testando novas vantagens, mas quase todas dizem respeito a facilidades temporárias para adquirir bens e serviços.
“E como que eu faço pontos, hein?”
A pontuação é calculada por um algoritmo que o Partido não revela por completo. Apenas diz que trata-se da somatória de cinco montantes, cada um resultado de um indicador:
Há três indicadores bastante óbvios: o perfil demográfico do cidadão (sexo, idade, localidade, renda, etc); seu histórico de crédito (se é um bom pagador) e sua “capacidade de desempenho financeiro” (o segredo de como esse indicador é calculado é absoluto). Mas agora que as coisas ficam polêmicas, porque os outros 2 indicadores são:
a) Preferências Comportamentais – Imagine que você gosta de Mangá. Acontece que o Partido não acha interessante você importar isso do Japão ao invés de comprar literatura nacional. Se você comprar Mangás, mesmo assim, perde pontos no indicador de preferências comportamentais. Se você passar muitas horas online todos os dias em games, pode ter problemas para conseguir um empréstimo no banco, também. Contudo, você pode ganhar pontos se compartilhar notícias otimistas em relação a China em suas redes sociais;
b) Relacionamentos – E é aqui que o Sesame Credit lembra muito o episódio “Nosedive”de Black Mirror do qual falei no início deste artigo. Isso porque a sua pontuação particular será determinada pela pontuação das pessoas com quem você mais fala na internet e também aquelas que convivem fisicamente próximas de você. Com isso, o Partido espera que você selecione melhor suas amizades, dando preferência a cidadãos que respeitem a autoridade do Partido. E também que você atue no sentido de ser um agente de transformação social rumo à “nova era comunista” da qual o presidente Xi Jinping falou.
“E dá para castigar as pessoas?”
Sim, penalidades estão sendo testadas. Caso você persista em uma pontuação baixa, a velocidade de sua internet cairá, por exemplo. E até mais grave: pessoas com baixa pontuação dificilmente conseguirão um bom emprego. O Partido vem estudando novas penalidades, também. Mas a princípio o Sesame Credit é centrado em recompensar e não em castigar.
“Mas não tem como todos saírem ganhando?”
Dada a natureza de alguns prêmios, eu diria que não. Por exemplo, “prioridade para alugar carros” pressupõe que apenas os primeiros lugares em algum ranking conseguirão usufruir desse benefício.
“Tá, mas e o que o Partido diz sobre tudo isso?”
Clique aqui para ler, em inglês, um documento oficial do Partido Comunista Chinês a respeito de seu sistema de crédito social, onde ele defende que tal sistema incentivará a “sinceridade” entre as pessoas, o que seria condição para uma “harmoniosa sociedade socialista”. O documento diz ainda que Sesame Credit é fundamentado em quatro princípios: “honestidade” (政务诚信), “integridade comercial” (商务诚信), “integridade social” (社会诚信), e “credibilidade judicial” (司法公信). Em outras palavras, o Partido promete jogar limpo.
Pontos positivos e negativos do Sesame Credit
A seguir, tentarei ser isento e elencar uma série de pontos positivos e também de negativos do Sesame Credit, levando em conta aspectos técnicos de sua mecânica e também ético e políticos.
Ponto positivo 1 – Maior acesso a crédito, conforme já exposto. Centenas de milhões de pessoas passaram a poder negociar com bancos, financiadoras e afins. O que implica em inclusão social e distribuição de oportunidades.
Ponto negativo 1 – O algoritmo é secreto. O cidadão não tem como saber se foi avaliado justamente. As regras podem ser alteradas sem que os usuários saibam ao certo.
Ponto positivo 2 – Avaliação mais precisa de perfil para o crédito social. O crédito social gera uma avaliação mais rica que os métodos tradicionais. Contudo, vale lembrar que o Facebook já tentou algo parecido com o Sesame Credit há 5 anos e desistiu, dizem, por falhas e limitações no algoritmo.
Ponto negativo 2 – Não há muita oportunidade de contra-controle, hoje. O Partido controla o cidadão, mas o Sesame Credit não prevê mecanismos onde o cidadão possa opinar sobre o Partido e suas políticas, seja em enquetes ou comentários. E ainda, o sistema será obrigatório para toda a população em 2020. Como dá para ver, o Sesame Credit não adota a abordagem Nudge, baseada em sutis e até gentis estímulos ambientais e sem coerções.
Ponto positivo 3 – O monitoramento mais detalhado da população pode fundamentar políticas públicas mais certeiras. E não apenas a respeito de crédito, mas em outros tópicos como Saúde, Educação, Segurança e Transporte. Com o Big Data aplicado ao consumo e à logística de 1,25 bilhões de chineses, será possível promover uma economia de recursos inédita na história.
Ponto negativo 3 – E como fica a privacidade? Isto é, o direito de se expressar, de ter opiniões mesmo que não sejam simpatizantes às das autoridades. E também o direito de agir sem ser monitorado, avaliado e rotulado. Tudo bem que a privacidade meio que já é um luxo em toda parte, mas o Sesame Credit parece levar isso ao extremo.
Ponto positivo 4 – O Sesame Credit pode ainda incentivar o consumo, fazendo a economia girar. Especialmente o mercado interno.
Ponto negativo 4 – Como o score é público para todos os cidadãos, tem-se o risco de exclusão social de pessoas com baixa pontuação. Afinal, você convidaria para uma festa aquele primo que não costuma obedecer muito o Partido se esse ato pudesse reduzir seus pontos no Sesame Credit?
Palavras finais
Ainda lembra de Lacie, de “Nosedive”? O final dela não foi dos melhores, como você já devia ter adivinhado, e pode ver neste take de uma cena final emocionante:
O episódio de “Black Mirror” retrata como a gamificação de cada mínimo aspecto da vida cotidiana pode levar a quadros de insanidade, patologias sociais. Talvez a maior diferença dessa gamificação com o Sesame Credit seja que aquela é tocada pelos indivíduos, enquanto que esta obedece a um poder central (e cada vez mais centralizador). Sempre que conto a respeito do Sesame Credit ouço comentários como “Poxa, isso é igual aquele episódio do Black Mirror!”. Pode ser mesmo que Black Mirror, como boa ficção científica pautada em crítica social, tenha conseguido captar o espírito dos nossos tempos digitais e antecipar o pior que pode vir dele.