Games

31 ago, 2017

Serious games: a nova era da educação

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Você já ouviu falar de serious games, a vertente que relaciona games com educação? Bom, se o termo é novo para você, gostaríamos de te apresentar Lucy Mari Tabuti, uma das maiores autoridades em serious games no Brasil.

Em sua página no LinkedIn, dentre as funções e áreas de atuação de Lucy, estão: empreendedora, educadora, matemática, cientista da computação, pesquisadora e promotora de eventos inovadores. Pouco não é! E a doutoranda da USP – Universidade de São Paulo, utilizou esta seção na edição de agosto da Revista iMasters para explicar melhor sobre o desenvolvimento do serious games, seus maiores objetivos, suas funções e como ele já tem atuado e o quão longe pretendem alcançar.

Revista iMasters: Você desenvolve pesquisas que relacionam games e educação, os chamados serious games. Quais os objetivos de desenvolver esse tipo de jogo?

Lucy Mari: As pesquisas que realizo e que relacionam games e educação são desenvolvidas em parceria com a Faculdade de Educação da USP, juntamente com o Grupo Alpha, onde as pesquisas em relação à educação estão ligadas ao perfil dos estudantes, perfil do público das gerações x (nascidos entre 1960 e 1980), y (nascidos entre 1980 e 2000), z (nascidos entre 2000 e 2010) e a geração alpha (nascidos a partir de 2010), pois essas pesquisas nos ajudam a entender o perfil e o comportamento do nosso público-alvo. Além disso, pesquisas referentes às teorias educacionais e pedagógicas – e como cada uma delas contribui, justifica e interage com a educação e os games – também são desenvolvidas.

As pesquisas que relacionam games e educação também são desenvolvidas no Interactive Technologies Laboratory (INTERLAB) na POLI-USP, onde as pesquisas em relação à educação estão relacionadas ao raciocínio lógico e ao pensamento computacional. Entendemos que os jogos podem ajudar no desenvolvimento do raciocínio lógico e do pensamento computacional que norteiam os estudantes e o público-alvo na resolução de problemas do dia a dia e em quaisquer áreas do conhecimento.

Outros conceitos que também são pesquisados quando desenvolvemos as pesquisas com educação e games são interação humano-computador, interface com o usuário, gamification e teoria dos jogos para a criação de estratégias para a tomada de decisões, que nos ajudam a desenvolver serious games que prendam a atenção do aluno para que o aprendizado das competências e habilidades dos conhecimentos envolvidos sejam efetivos.

Atualmente, o perfil dos estudantes é o aprendizado a partir do meio digital e os serious games estão incluídos nesse meio. Além disso, as características deles com objetivos bastante claros, com personagens e cenários numa história envolvente, que sejam interativos e que necessitam de esforços para conseguirem as recompensas interessantes, ajudam na efetivação do conhecimento.

RiM: Quais as maiores dificuldades em comprovar que os serious games funcionam, ou seja, que atingem o seu objetivo de aprendizado?

LM: As maiores dificuldades que temos é que cada estudante ou público-alvo são diferentes – no início, durante e no final da aplicação de cada jogo. Com nossas pesquisas, temos o perfil geral das características dos estudantes e do público-alvo, mas cada um dos indivíduos tem suas próprias características, independentemente da educação que recebem e do meio em que vivem. Eu, por exemplo, tenho dois filhos, um de 8 e outro de 10 anos. Eles são completamente opostos em tudo, recebendo a mesma educação e estando sempre no mesmo ambiente, interagindo grande parte do tempo, com o mesmo público. Um tem mais perfil para humanas e o outro para exatas, por exemplo.

Mesmo que um serious game seja desenvolvido para a geração Z, por exemplo, considerando todas as características e perfil dessa geração, além de todos os conceitos de interação humano-computador, interface com o usuário, gamification, teoria dos jogos e mais, os resultados do aprendizado do conhecimento dependem de outros fatores, como: já jogava outros tipos de serious games? Se sim, quanto tempo por dia? Já tem acesso aos meios digitais? Se sim, quanto tempo por dia? Já teve acesso aos conceitos educacionais envolvidos, sobre raciocínio lógico ou pensamento computacional? Se sim, com que frequência?

Por mais que consigamos um grupo com o máximo de características comuns, por exemplo (mesmo que utópico), quem realizará o experimento com o serious game criado para o desenvolvimento do raciocínio lógico e pensamento computacional não pode ter feito nenhum curso, capacitação ou oficina que tenha envolvido pensamento computacional, não pode ter tido contato com quaisquer tipos de games digitais, entre outros; sempre haverá outras características nos estudantes e no público-alvo que podem “ajudar” ou “prejudicar” que a comprovação do aprendizado dos conceitos educacionais envolvidos tenham sido efetivados exclusivamente pelos serious games.

Por exemplo, e isso é apenas um exemplo, pode ser que os estudantes que ajudem nos afazeres domésticos tenham mais capacidade de desenvolver estratégias nos serious games para efetivar o aprendizado educacional envolvido. Porém, não sabemos se isso pode ou não de fato contribuir ou prejudicar no aprendizado pelos serious games, porque são fatos, comportamentos que não estão diretamente ligados aos jogos.

RiM: Existe algum incentivo para o mercado de serious games?

LM: Na verdade, não apenas os serious games, como toda a educação no Brasil, precisam de um incentivo maior, principalmente governamental. O desenvolvimento de serious games ainda é muito caro, especialmente agora que estão sendo incorporados a Realidade Virtual, a Realidade Aumentada e a Realidades Mistas.

Independentemente do custo envolvido no desenvolvimento, a incorporação deles dentro do currículo básico da educação no Brasil depende bastante de o governo inserir um projeto acadêmico em que eles fossem incorporados como estratégia de ensino, a partir de um currículo voltado para projetos interdisciplinares com serious games. Porém, nesse caso, é necessário um investimento para uma infraestrutura com laboratórios de informática conectados à Internet e treinamento dos educadores envolvidos num projeto de currículo integrado.

Apesar do conhecimento de que as novas gerações de estudantes, em virtude de terem nascido no meio digital, aprendem melhor por meio de games digitais, no Brasil, ainda há muitos obstáculos a serem superados. Os investimentos das empresas que hoje desenvolvem serious games no Brasil são basicamente pessoais ou da família.

Talvez, a falta divulgar a importância e necessidade dos serious games. O BNDES abriu investimento ao mercado de games em 2016, mas poucas empresas de desenvolvimento de serious games conseguiram esse investimento.

Em países como a Finlândia, cujo investimento governamental na educação é efetivo, é perceptível como a educação desenvolvida por meio de projetos interdisciplinares que envolvem os serious games garante o efetivo aprendizado dos conceitos educacionais.

RiM: Fale mais sobre o que a sua pesquisa propõe: qual o tipo de game? Sobre o que o jogador aprende enquanto joga? Qual o objetivo dessa interação?

LM: Na pesquisa que desenvolvo, o principal objetivo é o desenvolvimento do raciocínio lógico e do pensamento computacional para o desenvolvimento de estratégias para a tomada de decisões e que ajuda no pensamento crítico dos estudantes e do público-alvo.

Em pesquisas mostram que, em virtude da tecnologia e da digitalização global, o desenvolvimento cognitivo e motor das crianças deixaram de ser utilizados com frequência pela praticidade de encontrar “tudo” pronto na Internet e nas mídias sociais digitais. Isso está fazendo com que os indivíduos percam a capacidade de desenvolver o raciocínio lógico para desenvolver o pensamento crítico para a criação de estratégias para resolver problemas do dia a dia.

Por exemplo, há pouco tempo, sem a tecnologia, utilizávamos mapas impressos, guias de ruas, perguntas feitas para outras pessoas na rua para nos locomovermos de uma localidade para outra, independentemente da distância. “Estudávamos” a melhor forma de realizar essa rota, o melhor caminho, a melhor distância, o menor custo, qual ou quais transportes, entre outros. Ou seja, você criava estratégias para se locomover de um local para outro, você desenvolvia pensamento crítico quando decidia que faria um caminho mais longo para não passar por uma região mais perigosa, por exemplo. Atualmente, basta você se utilizar de um smartphone e um aplicativo, como o Waze ou o Google Maps, para dizer apenas a origem e o destino, que a tecnologia traça as rotas, o tempo, o trânsito e para os diferentes meios – se de carro, a pé ou de transporte público, neste último indicando também quais transportes públicos, horários e custo. Esse exemplo mostra claramente que com a tecnologia o indivíduo parece “não precisar pensar mais”.

RiM: Existem estudos que mostram que os serious games são capazes de estimular a neuroplasticidade. Você acredita que isso pode ser aplicado como prevenção de doenças degenerativas como Alzheimer?

LM: O cérebro é como uma caixinha de surpresas, ele tem um potencial ainda desconhecido e em estudos. Quando o assunto é serious games na educação, principalmente para os estudantes nascidos na era digital, a forma como o cérebro desses estudantes está sendo desenvolvida a partir dos estímulos e experiências geradas pela televisão, Internet e jogos digitais faz com que esses estudantes tenham suas estruturas cerebrais desenvolvidas em processo linear, tornando suas mentes hipertextuais e diminuindo a velocidade do aprendizado. Dessa forma, é possível perceber como o cérebro se adapta ao aprendizado de acordo com os estímulos e ao ambiente em que está inserido e à forma como essas informações lhe são apresentadas. Isso significa que assim como os serious games são capazes de estimular a neuroplasticidade, também é possível que possam prevenir doenças degenerativas como o Alzheimer.

Há pesquisas satisfatórias com desenvolvimentos de protótipos de serious games para a Educação Médica e que envolve o Alzheimer. Nesse caso, os elementos a serem inseridos na Realidade Virtual podem ser manipulados e selecionados de acordo com o grau e o estágio que a doença tenha atingido e avançando conforme as necessidades de cada indivíduo, o que pode ser direcionado pela inteligência artificial.

Um tratamento que envolve tudo isso ainda tem um custo bastante elevado, em virtude de os dispositivos necessários ainda serem pouco acessíveis comercialmente e muito caros. Porém, num futuro próximo, esses tipos de tratamento serão disseminados e alcançados por todos os indivíduos que precisem.

RiM: Como você vê o mercado de games no Brasil (desde a pesquisa até a produção)? Estamos no mesmo nível de mercados consagrados, como os Estados Unidos?

LM: O faturamento dos games (veja, aqui não estamos falando apenas dos serious games, mas dos games em geral) no Brasil tem crescido exponencialmente. Em 2016, foram mais de US$ 1,6 bilhão; se considerarmos o faturamento mundial em games, essa cifra girou em torno dos US$ 100 bilhões, em 2016.

Os primeiros formandos em cursos universitários de jogos no Brasil estão se graduando agora. Até então, alguns dos formandos em cursos superiores como Ciência da Computação ou Engenharia de Computação seguiam pela área de desenvolvimento de games no Brasil. Porém, esse mercado já sinalizou a necessidade de especialistas em desenvolvimento de games que conhecem todas as estratégias, conhecimentos e recursos necessários para a aplicação na criação dos jogos digitais.

O desenvolvimento de games, quando consideradas algumas metodologias como o Lean UX, que desenvolve soluções a partir da experiência do próprio usuário quando validada por pesquisas realizadas na academia, auxilia na produção de jogos de sucesso para o mercado. Por isso, é importante que os profissionais que se formam em cursos universitários de games no Brasil tenham pesquisado e aprendido a desenvolver games utilizando essa metodologia.

RiM: Você acredita que, apesar de o mercado de games ser algo bem mundial e homogêneo – principalmente porque a distribuição acontece pela Internet -, existem particularidades que são e devem ser exploradas, dependendo do mercado em que o produto foi desenvolvido, ou para quem ele foi desenvolvido? Por quê?

LM: Certamente existem, sim, particularidades do público-alvo e do cliente para o qual o game foi ou está sendo desenvolvido. Primeiro, você precisa estudar seu cliente, seu público-alvo, para gerar as principais características gerais a serem consideradas no desenvolvimento de um game; caso contrário, esse jogo corre o risco de fracassar.

Eu, como professora de matemática, desenvolvi uma estratégia de aula na qual os alunos de uma escola da periferia de Osasco gostavam muito de empinar pipas. A partir da necessidade vinda dos próprios alunos, desenvolvemos juntos um projeto para definir os materiais necessários, tempo para a execução das atividades do projeto e, por fim, realmente empinar a pipa. O mais importante da atividade foi que os próprios alunos disseram qual o momento ideal, dentro do calendário escolar, para o desenvolvimento do projeto, uma vez que não se tem vento suficiente para empinar pipas em qualquer época do ano. O projeto envolveu conceitos de unidades de medida, perímetro, área, quantidades, valores, tempo, e estratégias de desenvolvimento e planejamento também foram considerados. Outro aspecto interessante foi a inversão dos valores em sala de aula. Uma atividade com os mesmos conceitos em que apenas exercícios de fixação são desenvolvidos é melhor realizada pelas meninas que dão suporte aos meninos. Nesse projeto da pipa, os meninos foram os protagonistas, e as meninas receberam orientações dos meninos para o desenvolvimento da atividade.

Porém, um projeto como esse dificilmente daria certo num colégio de elite localizado nos bairros mais nobres da capital paulista, pois possivelmente esses estudantes não incluem a criação de pipas em suas atividades de lazer – talvez, jamais tenham empinado uma pipa e também desconhecem a melhor época do ano para se empinar pipas.

Essa analogia nos faz perceber como precisamos conhecer os objetivos e os propósitos de um game e também o público-alvo para garantir o sucesso de um jogo. Para o desenvolvimento de quaisquer games, precisamos conhecer os indivíduos que vão utilizá-los, precisamos conhecer suas características, seus gostos, o que gostam de fazer, o que gostam de ter, como falam, o que ouvem, a que assistem, tipos de pessoas com quem interagem, entre outras muitas situações. Além disso, o local onde esses indivíduos se inserem, clima, solo, infraestrutura, entre outros, também devem ser considerados.

RiM: Recentemente, a Ancine disponibilizou um total de R$ 10 milhões divididos entre alguns projetos que trabalham com produção de games em todo o Brasil. Como você vê essas ações? Acredita que elas realmente podem elevar o nível da produção brasileira e incentivar o desenvolvimento de mais projetos?

LM: Para um mercado que fatura mais de US$ 1,6 bilhão no Brasil e mais de US$ 100 bilhões no mundo, um valor de R$ 10 milhões é realmente nada, mas pode ser a ponta de um iceberg.

Entendo que não basta investir apenas em projetos. Os projetos já vêm com as ideias prontas e, muitas vezes, as metodologias que estão sendo utilizadas ou serão utilizadas não levam em conta características de Lean UX, entre outras, para o desenvolvimento de games.

O governo poderia incentivar e financiar metodologias de desenvolvimento de jogos que podem ser aplicadas ao desenvolvimento de quaisquer tipos de games. Isso envolveria desde a pesquisa até a produção do jogo, dentro de estratégias que levem ao sucesso do game quando comercializado no mercado.

Podemos dizer que, nesse caso, o governo estaria incentivando, financiando e, consequentemente, divulgando a pesquisa, a educação e a criação no desenvolvimento de games. Isso faria com que os profissionais do setor no Brasil se tornassem qualificados para desenvolver games competitivos com os criados em mercados de games dos Estados Unidos e/ou do Japão.