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1 mar, 2013

A baixa taxa de abstração

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Uma alta taxa de abstração é fundamental para o diálogo, para a troca, para a inovação e para a colaboração, infelizmente não é o que temos como padrão hoje depois de décadas de ditadura cognitiva.

 

Uma das grandes dificuldades que temos hoje ao ensinar, fazer consultoria e dar palestras é combater a nossa baixa taxa de abstração.

Ela é fruto da ditadura cognitiva que termina com o fim da era cognitiva impressa/eletrônica e o início da nova primavera digital. (Uma ditadura cognitiva, ao contrário de uma social, não tem um ditador de plantão, ela é condicionada pelas tecnologias de comunicação/informação disponíveis.)

Nesse contexto, temos uma escola reprodutora  e não criadora de conhecimento, o que nos leva a um aumento radical  do nosso piloto automático, que aposta tudo na memória e pouco no aumento da taxa de abstração.

Esse diagnóstico nos leva aos seguintes sintomas:

  • Temos a ilusão de que a realidade existe;
  • Que a ciência estuda a realidade e não a percepção da realidade;
  • Que é possível com estudo chegar na realidade como se ela fosse algo parado e quem se mexe são as pessoas em direção à ela;
  • E, por fim, a incapacidade de criar, de inovar e sair das caixas: o eu e a realidade estão colados.

Só conseguimos criar quando podemos olhar para como olhamos!

Gosto da frase:

“Ver diferente é a condição necessária para continuar a ver”Gaston Bachelard;

Gleiser, no livro Criação Imperfeita, quebra com essa ideia da realidade final ou definitiva ao sugerir que ela é histórica, inatingível, pois só conseguimos ver aquilo que medimos, a cada fase da evolução humana.

A realidade é datada!

Nossa capacidade de medir é condicionada por mentes e máquinas que se debruçam sobre ela. A realidade, assim, seria muito mais versionada (ou seja, tem versões) do que achamos e a cada época se modifica. A ideia de uma realidade sólida é fruto dessa incapacidade de abstração. A de uma realidade líquida, construída pela diálogo, vai ganhando forma, conforme a taxa de abstração vai subindo.

Assim, a ciência não é o estudo da realidade, mas o estudo das percepções que temos da realidade.

Como vemos na figura abaixo:

ciência

(Por isso, a filosofia – que é o estudo de como pensamos – acaba aparecendo ao nos aprofundarmos em um dado problema, pois ajuda a analisar nossos modelos mentais. E o estudo das ciências é o estudo também dos modelos mentais que constroem as nossas percepções.)

Hoje a realidade (por isso entre aspas e mutante) é uma, amanhã será outra, a partir de nossos avanços (e também retrocessos), o que nos leva à ideia de que estamos em um movimento e tudo depende de nossa capacidade enquanto grupo humano de avançar e individualmente de abrir espaço entre o eu e a percepção da realidade.

A variação da taxa de abstração

Podemos dizer, assim, que somos mais ou menos oprimidos quando conseguimos perceber a realidade como um movimento, como o qual nos relacionamos, como algo vivo. Quanto mais a realidade é sólida para uma pessoa ou um grupo, mais oprimido estamos por ela!

Podemos tentar sugerir que existiriam, assim, três camadas  humanas ao sentirmos/pensarmos o mundo:

realidade_eu

 

  • O eu que é como nos vemos;
  • Um espaço entre o eu e a realidade, que é minha percepção da percepção que tenho da realidade, um espaço vazio para olhar e ver como sinto e penso, ou seja, uma capacidade de olhar de fora, de me ver pensando e sentindo, como se fossem dois – o que é a única forma de poder mudar;
  • E a realidade mutante, que está fora de mim, como algo observado e que me faz mudar as minhas percepções, a partir das trocas que estabeleço com fatos, experiências, pessoas, ideias etc.

Note na figura abaixo que quanto maior for a minha capacidade de observar a percepção da percepção que tenho da realidade, mais aumento a minha taxa de abstração, pois eu consigo olhar para o que penso sobre a realidade, quase de fora,  não tendo a ilusão que estou vendo a realidade diretamente, o que abre espaço para a troca e o conhecimento não-dogmático, para a capacidade de ver e não ser “domesticado”.

Veja abaixo:

eu_realidade

 

Podemos chamar essa medição de taxa de abstração.

Quanto mais eu consigo olhar como olho/sinto o mundo, mais tenho capacidade de conversar, debater, aprender, pois mais sei que estarei sempre conversando sobre percepções e trocando percepções – de uma realidade inatingível.

Uma alta taxa de abstração é fundamental para o diálogo, para a troca, para a inovação e para a colaboração.

Uma pessoa que não consegue dialogar sobre a percepção da realidade tem uma baixa taxa de abstração, pois juntamente cola o seu eu na realidade, acreditando que tudo que ela vê É A PRÓPRIA REALIDADE.

Pessoas dogmáticas/fanáticas têm essa características, como demonstrado na figura abaixo:

eu_realidade2

O problema é que com uma ditadura cognitiva, como essa que termina agora, atingimos MUNDIALMENTE  uma baixíssima taxa de abstração com pouca capacidade de criar projetos diferentes dos atuais. 

Estamos muito próximos da figura acima.

Os efeitos das ditaduras na nossa visão de realidade

Assim, podemos dizer que individualmente quando fazemos psicanálise (ou outro método terapêutico qualquer), participamos de espaço de reflexão/ação, criamos espaço de nos olhar de fora através, por exemplo, da meditação, começamos a aumentar a nossa taxa de abstração.

A taxa de abstração é individual e cada um tem maior ou maior grau, dependendo do dia, semana, mês, ano, crises, fases e conjuntura da vida etc. Além de algo que é genético, que leva a algumas pessoas terem um cérebro mais abstrativo do que os demais, tais como Einstein, Freud e Darwin, por exemplo, que conseguiram olhar a realidade muito mais do alto e fazer muito mais conexões inusitadas do que a maioria das pessoas.

Porém, há também a taxa de abstração coletiva e a relação desta com a da circulação das ideias e destas com as ditaduras sociais ou cognitivas.

Podemos lembrar que o primeiro ato de qualquer ditadura (a história está aí para comprovar) é impedir a circulação de pessoas e ideias.

O objetivo é construir uma noção mais única da realidade, reduzir a taxa de abstração e fazer com que as pessoas aceitem as coisas como são, “deixem a vida nos levar”, reduzindo a entrada no ambiente cognitivo de novas ideias, que vão levar às pessoas a questionarem a sua noção da realidade.

A realidade será mais e mais aquela que os controladores dos fluxos determinar, pois não há nada que faça a contra-posição e que obrigue as pessoas a olhar como elas pensam. Isso ocorre de forma periférica e muito pontual.

Ditaduras trabalham fortemente para reduzir a taxa de abstração. Não é à toa que a arte e a filosofia são logo atacadas, pois vão na direção contrária.

Já existem vários estudos sobre ditaduras sociais e até os efeitos destas nas sociedades e nos indivíduos.

  • São análises que estudam como um regime político em um dado país ataca a circulação de ideias e pessoas, a partir de uma ideologia autoritária e as consequências que causam.
  • Porém, não temos ainda estudos sobre ditaduras cognitivas, aquela em que um ambiente cognitivo global prejudica a circulação de ideias e pessoas, a partir de uma tecnologia restritiva, como é o caso das utilizadas nos ambientes cognitivos da escrita impressa e mídia eletrônica, que estão migrando, aos poucos, para outra etapa.

Podemos observar, assim, que nos últimos séculos, a partir de 1800, fomos, aos poucos, mais e mais centralizando os fluxos das ideias, reduzindo, pela ordem:

  • o tempo cada vez mais longo da chegada de novas fontes na sociedade;
  • o que nos leva à redução da meritocracia;
  • redução dos pontos de vistas;
  • pasteurizam-se, assim, as ideias circulantes;
  • cria-se uma baixa taxa de abstração e, portanto, de inovação.

O resultado disso é que reduzimos bastante a taxa de abstração das pessoas, que estão começando – bem no início – a sair dessa ditadura cognitiva com a nova liberdade de circulação de ideias trazidas pela Web 2.0. Elas começam a ser demandadas para sair da caixa, mas justamente foram preparadas para continuar e nem ver que a caixa existe!

Vemos isso em todos os lugares.

As pessoas têm muita dificuldade de ouvir e receber novas ideias, ainda mais se elas forem bem diferentes daquelas que estão empacotadas na sua cabeça e coração. Não há espaço abstrativo para colher a novidade.

Estamos tão colados na realidade, como se ela fosse única e imutável.

Somos filhos da ditadura cognitiva que termina. Questioná-la é questionar as próprias pessoas, pois a realidade é a própria pessoa!

O eu e a realidade se misturam, como se fossem únicos, eis a gravidade do problema, que impede que surja o novo e a inovação!

Os efeitos da baixa taxa de abstração na capacidade de inovação

Uma baixa taxa de abstração coletiva, mundial, como é o caso, nos leva a situações interessantes (e trágicas), a saber:

  • as pessoas se voltam mais e mais para objetivos menores, individuais e pouco coletivos;
  • se agarram ao prazer imediato, tal como em adquirir bens materiais;
  • perdemos nossa capacidade de planejar no longo prazo, apenas no curto;
  • aumenta-se, assim, a taxa de adoração material e reduz-se o espiritual (aqui entende-se como projetos coletivos da humanidade).

Como a realidade é imutável, pois é única e sólida, perdemos a capacidade de propor projetos coletivos, o que nos leva a nos voltar para o próprio umbigo, fortalecendo-se o individual em detrimento do todo.

Perdemos nossa capacidade de abstrair, de inovar, de sair da caixa para uma caixa maior (que seria mais espiritual = coletiva).

E o mais interessante que quando estamos com essa baixa taxa de abstração é justamente nesse final da ditadura cognitiva que mais precisamos dela, pois tudo começa a mudar, a inovação começa a ser algo bem difundido, como foi depois da revolução cognitiva do papel impresso, que nos levou à renascença.

Estamos, portanto, amarrados, dogmaticamente e dramaticamente, em uma caixa pequena, apertada, escura, com pouco ar, pois nosso eu colou na realidade.

É um dilema grave.

Precisamos abstrair, inovar, criar, voar mas não conseguimos, pois fomos educados em um índice muito baixo de abstração e isso atinge também a geração y, que apesar de estar já no novo ambiente de forma integral, ainda é obrigada a frequentar a escola da ditadura cognitiva passada e ir para o mesmo espaço intoxicado dos ambientes organizacionais.

Por isso, tenho procurado nos meus encontros promover um intenso debate, apresentando uma realidade líquida e participativa, para abrir portas, que sempre existem esperando chaves, para aumentar essa taxa da abstração – prisioneira nesse velho castelo cognitivo que começa a ruir.

A batalha é essa.

É coletiva e mundial.

Pergunto: vais ajudar a aumentar a sua taxa e dos demais?

Tá dentro?

Que dizes?