“Na prática, a teoria é outra… Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço…”
Já no tempo dos nossos bisavós, a sabedoria popular lançava mão de provérbios para expressar a imensa dificuldade que experimentamos quando tentamos pôr em prática uma teoria. Seria diferente no caso da inclusão digital? Na teoria, talvez nos pareça que sim; na prática, geralmente não. Construtores de softwares, home pages, computadores e terminais eletrônicos são seres humanos, como qualquer outro, com resistências e limitações, expostos a todo tipo de pressão, tudo isso interferindo diretamente no produto final do seu trabalho. A incorporação de um novo princípio ou padrão demanda – além de tempo e dinheiro – um esforço pessoal.
O objetivo deste trabalho é produzir um texto claro e agradável, que contribua para tornar mais estimulante e menos árida a assimilação da meta da Inclusão Digital, pelos construtores de software e equipamentos digitais.
Para chegar ao resultado desejado, procurei abstrair da experiência, quais eram as atitudes, conscientes ou não, que levavam os construtores a desenvolver produtos incompatíveis com o conceito de Inclusão Digital. Para cada atitude identificada, procurei situações reais que exemplificassem suas conseqüências. Por motivos éticos e estéticos, foram apresentados dados fictícios. Mas o evento gerador da inclusão/exclusão digital foi rigorosamente reproduzido, a partir de um fato real. Para manter esta fidelidade ao fato real, dentro da minha experiência pessoal, a maior parte dos exemplos baseia-se em episódios vividos por pessoas deficientes visuais da classe média urbana. Espero que, a partir destes exemplos, não seja difícil para o leitor imaginar episódios semelhantes em outros contextos. Espero também que os exemplos sirvam para demonstrar que a “exclusão digital” é um fenômeno amplo, que não atinge apenas às pessoas geográfica ou cultural ou sócio-economicamente distantes de algum padrão.
Os sete pecados capitais
I – Desconsiderar a Diversidade do Público Alvo
Robert, um cientista cego, recebeu e-mail de um ministério do seu país. O texto informava que ele era um dos profissionais selecionados para preencher um questionário, com o objetivo de fundamentar estudos prospectivos em ciência e tecnologia. Ele era convidado a acessar uma página da web e preencher o formulário eletrônico correspondente à sua área de atuação. Tentou fazer isso, mas teve dificuldade para navegar na página e preencher o formulário. Mandou então um e-mail para os organizadores da pesquisa, que ficaram muito surpresos, pois não imaginavam que poderia haver uma pessoa cega dentre os profissionais selecionados. Comunicaram-se com os construtores da página, que providenciaram as alterações necessárias. Infelizmente – para Robert e para seu país – a página acessível ficou pronta numa data muito próxima ao prazo final e, devido a compromissos profissionais, Robert não teve tempo de participar da pesquisa. Mas a lição foi aprendida:
O seu público-alvo é mais heterogêneo do que você imagina
II – Desconsiderar os limites e referenciais dos usuários
Na véspera de um feriado prolongado, Laura, uma artista plástica que se recuperava de uma hepatite, pediu à sua mãe que fosse ao caixa eletrônico. Dona Júlia ainda tentou argumentar que “não sabia lidar com essas coisas”, mas acabou cedendo, por falta de alternativas: Laura não podia sair de casa, o banco já tinha fechado, elas estavam sozinhas e sem dinheiro. No caixa eletrônico, a fila era grande e as pessoas terrivelmente impacientes. Apesar das instruções detalhadas de Laura, Dona Júlia não conseguia encontrar a opção desejada antes que a tela desaparecesse, obrigando-a a recomeçar várias vezes a operação. O tamanho da fila e as caras feias das pessoas, esperando lá fora, deixavam Dona Júlia ainda mais atrapalhada. Parecia uma missão impossível, “entrar com a senha certa, cheia de números repetidos, naquele teclado sem teclas!” Naquele dia, Dona Júlia saiu do caixa chorando e sem o dinheiro; mas não sossegou enquanto a filha não mudou a conta para outro banco, com equipamentos mais amigáveis. Este episódio ocorreu há 15 anos, mas o ex-banco de Laura ainda não aprendeu a lição:
Respeite os limites, referências, habilidades e valores do usuário
III – Desrespeitar os padrões
Paulo, um analista de suporte, cego, trabalhava para uma grande empresa de processamento de dados. Um dia, Paulo recebeu do seu chefe a incumbência de desenvolver um aplicativo que integrasse dois módulos de um importante sistema da empresa. Cada um dos dois módulos havia sido desenvolvido por equipes diferentes e eram executados em computadores fornecidos por diferentes fabricantes, o que significava dizer que estes computadores não tinham as mesmas características. Paulo conhecia bastante bem um dos computadores, pois todo o seu treinamento fora feito com computadores do mesmo fabricante. Para executar sua missão, Paulo precisava ter um mínimo de conhecimento sobre o outro computador. A primeira coisa que ele fez foi procurar, dentro da empresa, alguma documentação existente sobre o assunto. Para seu desespero, descobriu que a pouca documentação disponível estava toda em papel, o que não atenderia às suas necessidades. Sua segunda tentativa foi procurar na empresa pessoas que tivessem conhecimento sobre o computador em questão. Infelizmente as pessoas que detinham tal conhecimento não puderam ajudá-lo muito, pois estavam todas assoberbadas com o trabalho. Sem muitas esperanças, Paulo resolveu fazer na internet uma pesquisa sobre o computador em questão. Foi então que encontrou nada mais, nada menos, do que um manual que explicava tudo o que ele precisava saber. E para melhorar ainda mais a sua situação, o manual estava todo no formato HTML, que é um padrão usado há algum tempo e passível de ser acessado por pessoas cegas. De posse de tais informações, ficou fácil para Paulo cumprir, no prazo, a tarefa recebida. Além disto, ele nem precisou efetuar conversões na documentação encontrada, pois esta já obedecia um padrão de mercado, que podia ser diretamente acessado por ele. Paulo, no seu trabalho, nunca vai esquecer a lição:
Informe-se sobre padrões e obedeça-os. Isto certamente facilitará o acesso por mais pessoas.
IV – Usar um único meio para acessar as funcionalidades do produto.
O micro que Nina usava no trabalho definitivamente não andava bem. Naquela noite foi a tomada do mouse que resolveu parar de funcionar. E não adiantou sacudir, apertar, nem trocar o mouse. Foi então que Lia, uma analista cega, teve a idéia de ensinar Nina a navegar pelo teclado. No começo, Nina se atrapalhou; mas acabou pegando o jeito: leu as mensagens de e-mail, entrou no editor de texto, conseguiu até acessar o mainframe. Mas não conseguiu usar o dicionário, nem o construtor de páginas web, pois estes softwares não obedeciam o padrão de navegação do Windows, necessitando do uso exclusivo do mouse. Foi desta maneira inusitada que Nina começou a compreender as críticas de Lia em relação à acessibilidade de certos produtos. Nina, certamente, não vai esquecer a lição:
Seja flexível: dificilmente um único meio de acesso poderá ser usado em todas as circunstâncias
V – Usar um único meio para apresentar a informação
Ao voltar da praia, num domingo ensolarado, Inácio Silva encontrou na secretária eletrônica um recado de Zazá. O recado pedia que ligasse imediatamente para ela, pois tinha uma grande novidade. Geralmente era assim, ela deixava recados deste tipo mas, quando ele ligava, a novidade nem sempre era tão nova… Desta vez, porém, havia um tom diferente na sua voz e ele resolveu ligar imediatamente. Sem muitos rodeios, ela foi logo despejando a tal novidade: “Acabo de saber uma coisa sensacional! A companhia telefônica local está disponibilizando um serviço pelo qual você pode enviar e receber mensagens de correio eletrônico. E não é só isto, você pode também ter agenda de compromissos!” Zazá estava tão eufórica que nem percebeu o desinteresse com que Inácio ouvia sua “estupenda novidade”. Ele teceu alguns comentários superficiais e despediu-se sem pensar mais no assunto.
No dia seguinte, ao ouvir o noticiário matinal, Inácio deparou-se com uma propaganda, até então desconhecida, anunciando que seria possível enviar e receber mensagens de correio eletrônico via telefone. Lembrou-se imediatamente de Zazá e sua estupenda novidade. Era isso, então, o que ela queria lhe contar e ele ignorou solenemente! Arrependido, resolveu testar o serviço. Entrou na página anunciada, fez o cadastramento exigido e realmente conseguiu enviar e receber mensagens de correio, além de usar a agenda de compromissos, tudo isto sem nenhum problema. Começou, então, a conjecturar que este serviço poderia ser de grande valia para pessoas cegas, principalmente se estas tivessem algum acesso à internet. Porém, olhando mais detalhadamente a página do produto, percebeu que muitas das informações relevantes para o uso do serviço eram apresentadas em forma de gráficos. Na tela de cadastramento de usuários, por exemplo, os títulos dos campos nome, senha, sexo etc., não eram mostrados como um texto, mas como uma imagem. Inácio sabia que os leitores de tela, usados pelos cegos, não têm a habilidade de converter estas imagens para textos, o que impossibilita sua leitura. A solução para este problema seria simplesmente associar à imagem um texto, recurso este disponível no html e muitas vêzes esquecido pelos desenvolvedores de páginas. Não é preciso dizer que Inácio tentou fazer contato com os responsáveis pelo serviço mas foi ignorado. Assim, muitas pessoas cegas ficaram impossibilitadas de usar plenamente o serviço e a companhia telefônica deixou, seguramente, de faturar algum dinheiro, por não saber a lição:
Seja redundante: dificilmente uma única forma de apresentação conseguirá atingir a todos
VI – Nas instruções de um produto, esquecer que o usuário pode não estar familiarizado com o novo universo descortinado pelo produto
Quanto mais a micro-informática evoluía, mais triste ficava Rosa. Agora, tudo era Windows, ou seja, tudo vinha embrulhado numa interface gráfica, que condenava ao museu seu ambiente de trabalho, que tinha montado com tanto empenho, mas que só funcionava em DOS. Claro que existiam ferramentas para Windows, muito mais poderosas do que as suas. Mas Rosa – uma professora cega -, não tinha o tempo nem o apoio necessários para desbravar esse novo mundo. Para começar, precisava de alguém com visão e qualificação para instalar o ambiente. Além disso, era um ciclo vicioso: precisava navegar no Windows para ler o manual e aprender a usar o software leitor de tela, mas precisava do leitor de tela para navegar no Windows, ou seja, precisava do leitor de tela para aprender a usar o leitor de tela e precisava navegar no Windows para aprender a usar o Windows. Durante dois anos, Rosa sofreu em silêncio. Misturado a um sentimento de vergonha e impotência, nutria um ódio mortal à Microsoft, por ter desbaratado seu ambiente de trabalho e estudo. Um belo dia (e para Rosa aquele dia foi realmente belo), um amigo lhe emprestou o tutorial de um leitor de tela, que vinha gravado em fitas cassete. Isto já era um facilitador pois, para ler, Rosa tinha que pilotar o seu velho gravador, em vez do tenebroso Windows. Além disso, o tutorial explicava, junto com o produto, os conceitos básicos do Windows. E foi este simples recurso que ajudou Rosa a superar suas barreiras, reconstruir seu ambiente de trabalho e voltar a sorrir… E é a experiência de Rosa que nos ensina a lição:
Forneça instruções que ajudem o usuário a se situar no universo descortinado pelo seu produto, pois ele pode não estar familiarizado com este universo.
VII – Não ser acessível ao usuário final
José Manuel, um pacato cidadão, cumpria religiosamente, todos os anos, uma enfadonha rotina: entregar sua declaração de imposto de renda. No país em que ele morava, a declaração era entregue obrigatoriamente em papel e, para fazê-la, José Manuel sempre tinha que pedir ajuda aos amigos, pois era cego. Isto não era um grande problema, apesar de Manuel ter de mostrar a outros o seu histórico financeiro, o que lhe causava algum constrangimento. Um belo dia, José Manuel ouviu a notícia de que a declaração do imposto de renda poderia ser feita através do seu computador. Ele não perdeu tempo; tratou de instalar imediatamente na sua máquina o programa que resolveria parte dos seus problemas. Eufórico, José começou imediatamente a fazer testes com o programa. Foi então que constatou que a interface do aplicativo era, em grande parte, incompatível com o seu leitor de telas. Após algumas tentativas frustradas, Manuel resolveu entrar em contato com os responsáveis pelo aplicativo. Para seu espanto, verificou que não seria possível tal contato, visto que, tanto no aplicativo quanto na página onde o download do mesmo fora feito, não havia informação de telefone nem e-mail. José Manuel continua, até hoje, entregando sua declaração, como manda a lei. Porém continua, também, dependendo da ajuda dos amigos. O aplicativo que ele, com seu imposto, ajudou a financiar não lhe permite o acesso, porque os construtores do mesmo não aprenderam a lição:
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