Antes da urna eletrônica, as pessoas cegas podiam votar de duas maneiras: em tinta ou em braille.
Para votar em tinta, a gente colocava a cédula dentro de um gabarito,
que nada mais era do que uma capinha de cartolina com alguns buracos,
que deixavam descobertas exatamente as partes da cédula onde o eleitor
deveria escrever.
Por exemplo, numa eleição para prefeito e vereador, uma parte da cédula teria todos os nomes e números dos
candidatos a prefeito, cada um com um quadradinho na frente, como numa
múltipla escolha. O gabarito para votar em tinta tinha os nomes em
braille e um buraco em cada quadradinho, para a gente colocar o X no
lugar certo do nosso candidato. Na outra parte da cédula, o gabarito
tinha uma janelinha retangular, exatamente na linha onde a gente
deveria escrever o número do nosso candidato a vereador.
Os problemas
eram vários. Muitas seções não recebiam os gabaritos e muitas pessoas
cegas não conseguiam pegá-los antecipadamente em alguma escola ou
instituição da sua cidade. Às vezes, no caminho da mesa até a cabine, a
cédula saía de dentro do gabarito, obrigando o eleitor a voltar à mesa,
para que alguém a recolocasse no lugar certo. Ou então, após exercer o
seu voto, o pobre do eleitor era acometido por uma angústia atroz, em
relação à fidelidade da caneta que estivera usando…
Para as pessoas cegas que não sabiam escrever os algarismos com
uma caneta, existia o voto em braille. A cédula era colocada numa reglete
(que é uma máquina manual de escrever em braille) e o eleitor escrevia
o seu voto na cédula, não importando o lugar onde isto iria ficar. Como
trabalhei em várias eleições, senti na carne o tamanho das complicações
geradas por este processo arcaico: grandes filas, mesários
despreparados, sem falar na apuração! Lembro-me bem de uma apuração no
clube Piraquê (Zona Sul do Rio de Janeiro). A gente havia chegado às
7:30 da manhã para trabalhar na seção eleitoral e, àquelas alturas, já
passava das 11 da noite. O braille das cédulas já estava meio amassado
e, às vezes, dava margem à dúvida. Cada cédula em braille tinha que ser
lida por dois apuradores cegos e, se houvesse discordância, por um
terceiro. E aí, a gente argumentava até chegar a um acordo sobre o que
teria sido a real intenção do eleitor; parecia que aquilo não ia acabar
nunca! E tudo isso acompanhado de perto pelos fiscais dos partidos
(aquela foi a única vez em que vi alguma vantagem em só termos dois
partidos políticos).
Felizmente tudo isso pertence ao passado… Quando soube que o Brasil
iria informatizar o voto, embora preocupada com a questão da segurança,
fiquei animada. Eu, que trabalhava com informática desde o tempo dos
cartões perfurados, sabia muito bem avaliar a importância daquele salto
tecnológico para os cegos. Finalmente, iríamos votar em igualdade de
condições!
Vejamos: em vez de regletes desajeitadas com folhas
pequenas, gabaritos que soltam das cédulas e canetas cuja escrita não
podemos controlar, usaríamos um teclado como o de qualquer outro
eleitor, que teria dígitos também em braille. As urnas eletrônicas
teriam placa de som, sintetizador de voz e um programa leitor de tela,
possibilitando que tudo o que fosse mostrado no visor da urna
eletrônica, fosse ouvido pelo eleitor cego. Assim, cada algarismo
digitado poderia ser visto pelo eleitor vidente e ouvido pelo eleitor
cego; e, após completar o número do seu candidato, o eleitor vidente
veria o nome e a foto do seu candidato, enquanto o eleitor cego, não
podendo ver a foto, ouviria o seu nome. Não, não era um sonho; eu
conhecia a tecnologia necessária para fazer isto e sabia que não era
caro nem complicado. E foi por isso mesmo, por saber que era simples e
barato, que fiquei tão decepcionada quando conheci a urna eletrônica
que temos hoje.
Em geral, as pessoas que desconhecem as necessidades de acessibilidade
das pessoas cegas tendem a ficar muito bem impressionadas quando
encontram um teclado que tenha alguma marcação em braille, como é o
caso da urna eletrônica. Todavia, a grande dificuldade das pessoas
cegas não está no teclado, está na tela. Imaginem uma urna eletrônica
cuja tela se comportasse da seguinte maneira: quando você digitasse um
algarismo no teclado, ele seria mostrado na tela por dois segundos,
apagando-se em seguida; aí você digitaria o próximo algarismo, que
seria mostrado, sozinho, por dois segundos; e assim sucessivamente.
Nada de foto, nada de nome, você votaria assim? Pois é, a gente vota.
As pessoas cegas votam tendo como retorno apenas o eco das teclas. A
gente se adapta. O ser humano se adapta a quase tudo. O ser humano que
tem uma deficiência se adapta mais ainda, por necessidade. Porém, no
caso da urna eletrônica, qual é a necessidade de obrigar os eleitores
cegos a votarem em condições desiguais?
Tenho o costume de ir votar sozinha; mas em uma eleição
combinei com minha sobrinha de irmos juntas e almoçarmos depois. Após
entregar meus documentos para o mesário e assinar o livro, estranhei
quando o presidente da mesa insistiu demasiadamente para que a minha
sobrinha me acompanhasse até a urna. Lá chegando, descobri que não
havia fones de ouvido. Lamentei não ter um fone na bolsa, mas me
explicaram que não adiantaria, pois a urna não tinha placa de som.
Eu voto há muitos anos no Instituto Benjamin Constant,
um tradicional colégio de cegos do Rio de Janeiro, o mais antigo do
Brasil. Nunca transferi meu título para uma seção perto da minha casa,
por acreditar que meus direitos de eleitora estariam mais garantidos
num local onde votam muitas pessoas cegas. E ali estava eu, atônita,
parada na frente de uma urna sem fone, depois de ter assinado o livro
sem ao menos ter sido informada do que me esperava… Tentando pensar
rápido, como a situação exigia, percebi que precisava escolher entre
três alternativas:
A primeira alternativa seria votar sem nenhum retorno. Lembram daquela
explicação em que os algarismos apareciam na tela por 2 segundos, um de
cada vez? Podem esquecer… Imaginem agora que vocês chegam para votar
e encontram uma urna sem tela. Isso mesmo, vocês só têm o teclado e
aquele barulhinho, “pirilirilimmm”, indicando quando acabou. Vocês
votariam nestas condições?
A segunda alternativa seria usar a minha sobrinha para me dar o
retorno. E se eu tivesse ido sozinha, pediria para quem? E como fica o
meu direito ao voto secreto?
A terceira alternativa seria partir a tela da urna a bengaladas, de
modo que todos pudessem votar em igualdade de condições. Afinal, numa
democracia, os direitos são ou não são iguais?