Acessibilidade

28 mai, 2012

Acessibilidade: esse negócio tem futuro?

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01. A viagem

Quando eu ainda estudava no curso primário, li um pequeno texto, do qual não me lembro o autor, mas cujo conteúdo nunca esqueci. Tratava-se de uma tentativa de descrição dos seres humanos, feita por um viajante espacial de outro planeta. A descrição propriamente dita não me causou grande impacto; para ser sincera, até achei que o autor foi pouco criativo. O que me impressionou mesmo foram as alusões que ele fazia à pobreza de sons, cores e dimensões do nosso planeta.

Aquela foi a minha única, porém valiosa, viagem espacial. Naqueles poucos minutos, enquanto o meu corpo franzino de pré-adolescente jazia sentado na carteira do grupo escolar de um modesto subúrbio carioca, a minha mente viajou, por bilhões de anos-luz, para outros planetas, outras estrelas, outras galáxias… E se aquilo fosse verdade? Não importava o que a ciência podia comprovar, mas a possibilidade de pensar em realidades totalmente diferentes daquelas imagináveis dentro dos limitados parâmetros construídos a partir das nossas paupérrimas experiências terrestres.

Poucos anos mais tarde, descobri que não precisava sair do nosso planeta, nem mesmo do meu medíocre subúrbio, para estar completamente cercada por fenômenos que transcendiam a capacidade de compreensão do ser humano e viver bombardeada por estímulos que ultrapassavam largamente a capacidade de percepção dos nossos limitados cinco sentidos.

02. O misterioso planeta Terra

Para começar, a planície mais plana em que caminhamos não é plana, pois faz parte da superfície arredondada de uma quase esfera com 12.700 km de diâmetro, que é a Terra; e quando paramos para descansar, não ficamos parados, pois a Terra está sempre se movendo (ainda bem, caso contrário ela deixaria sua órbita de 365 dias e 6 horas e faria um mergulho de 150 milhões de quilômetros até cair no Sol).

Nossa brilhante e delicada Lua não tem brilho próprio nem delicadeza, pois é apenas uma grande esfera opaca, árida e rochosa, cujo diâmetro é cerca de 1/4 do diâmetro da Terra.

A imensa diversidade de sons que ouvimos não é mais do que uma fatia dos sons existentes (que vai dos 16 aos 20.000 Hertz de freqüência), da qual não fazem parte muitos sons conhecidos, como, por exemplo, as ondas de rádio, os sons do radar e da ultra-sonografia. Além disso, para entrar na fatia perceptível, o som não pode ter menos que uns 5 decibéis de intensidade.

O maravilhoso espectro de cores do arco-íris que vemos só abrange as freqüências do vermelho ao violeta, deixando de fora todo o resto, como por exemplo, o infravermelho e o ultravioleta. Sem falar nos raios X e na radioatividade, que atravessam o nosso corpo sem que tenhamos conhecimento do que está acontecendo. Aliás, até para perceber as ondas de energia emitidas pelo nosso próprio cérebro, precisamos de um aparelho de eletroencefalografia.

O nosso corpo está cercado e é freqüentemente invadido por minúsculos seres que não conseguimos perceber: os vírus e bactérias, cujo tamanho se mede em mícron, que é um milésimo de milímetro.

As substâncias mais sólidas e compactas e as superfícies mais lisas e contínuas, como barras de ferro e portas de vidro, não são nem compactas nem contínuas, pois são constituídas por ínfimas porções de matéria, separadas por espaços vazios proporcionalmente gigantescos, como nos explicam os físicos a respeito dos átomos e moléculas. E, apesar de não percebermos nada disso, não duvidamos deles!

03. Nossos pobres sentidos

Pois bem, com uma realidade desta, se o ser humano não consegue perceber o que está acontecendo aqui, debaixo do seu nariz, o que é que eu ia fazer nas estrelas? Fosse ou não a coisa por lá diferente e deslumbrante, nossos grosseiros sentidos humanos iriam captar o quê?!

Nossos olhos não conseguem perceber os lentos movimentos das nossas próprias unhas crescendo, nem mesmo os movimentos muito mais rápidos do desabrochar de uma rosa; e nem sequer se dão conta de que os movimentos dos nossos ídolos no cinema não são movimentos, são uma farsa montada com uma série de imagens estáticas. Nossas mãos não são capazes de detectar que estão cobertas de bactérias, nem percebem o quão ocas são as vigas de aço, concreto e ferro que sustentam os prédios em que moramos e trabalhamos.

Mas o que tem tudo isso a ver com o tema deste artigo?

04. Afinal, o que é Acessibilidade?

Infelizmente, nada disso tem relação alguma com acessibilidade, ao menos por enquanto. Nós, que julgamos entender alguma coisa de acessibilidade (felizmente esse grupo está crescendo), falamos nos direitos de igualdade, cidadania e independência de velhinhos, grávidas, deficientes e pessoas que usam dispositivos esdrúxulos, ou se encontram em ambientes diferentes; falamos em leis, diretrizes e padrões nacionais e internacionais. Os mais aplicados dentre nós estudam usabilidade, Universal Design, padrões Web, WCAG, DAISY, normas ANSI, NISO, ISO, ABNT… Quando focamos nos resultados, falamos na ampliação do universo de clientes e usuários, que pode ser alcançada com a conquista desta grande fatia de mercado, formada por toda essa gente diferente.

Como vemos, em todos estes enfoques, a acessibilidade aparece como algo que tem a ver com pessoas que têm alguma deficiência ou necessidade especial. Mas será que acessibilidade é mesmo “só” isso?

05. Mudando paradigmas

Não que isso seja pouco, não me interpretem mal, por favor… O que temos a fazer não é pouco, nem em quantidade de trabalho, nem em relação à qualidade de vida alcançada pelos seus resultados, nem quanto ao montante de negócios que pode ser gerado. É muito, muitíssimo! O que me parece inadequado e totalmente insuficiente não é o nosso trabalho, é a nossa perspectiva.

Vou tentar me explicar através de um exemplo. Não sei quem inventou o termo “ajudas técnicas“. Se soubesse, prestaria aqui minha homenagem; esse conceito representa uma grande ajuda em discussões técnicas, pois funciona como um poderoso coletivo de toda a parafernália criada pela tecnologia, para ajudar pessoas com deficiências. Até aqui, tudo bem. Porém, um dia desses fui ao Jardim Botânico fazer uma visita guiada por um ornitólogo, para apreciar e entender alguma coisa sobre passarinhos. Como era de se esperar, algumas pessoas levaram lunetas; o próprio Jardim Botânico tem lunetas para emprestar. E foi aí que eu fiquei pensando… Por que não chamamos estas lunetas de “ajudas técnicas“? Só porque não são usadas por pessoas deficientes?

Portanto, para definir algum artefato como ajuda técnica, precisamos, antes, saber quem o está utilizando. Se for uma pessoa com deficiência, então é uma ajuda técnica; caso contrário, não é. Em termos de políticas públicas, esta separação pode ser bastante útil, pois precisar de uma luneta para ver passarinhos é muito diferente de precisar de uma luneta para conseguir ler o que o professor está escrevendo no quadro a três metros de distância.

Mas será que isto basta para compreender o problema?

06. Incapacidade X Deficiência

Definições como a de “Ajudas Técnicas” pressupõem uma clara separação das pessoas entre deficientes e não deficientes. Mas, na prática, como é que se faz esta separação?

Por exemplo, mesmo que uma pessoa seja totalmente cega de um dos olhos, se tiver visão “normal” no outro olho, não será considerada uma pessoa com baixa visão e não terá direito às ajudas e benefícios concedidos às pessoas com deficiências, pois, da maneira como nossa sociedade está organizada, esta pessoa continua podendo usar a visão para realizar atividades essenciais, tais como ler e se locomover. Imagino que, se a nossa principal atividade fosse a caça, talvez essa pessoa tivesse que ser considerada deficiente. Por outro lado, se as nossas placas e livros fossem escritos com letras maiores, menos pessoas seriam classificadas como deficientes visuais.

Quero dizer com isto que a deficiência e o seu grau de severidade dependem das atividades e dos recursos disponíveis em cada cultura. Os testes para avaliar uma deficiência visual, por exemplo, consideram o melhor olho, após a aplicação da melhor correção óptica possível.

É por isso que a CIF sabiamente diferencia os conceitos de “desvantagem” (handcap), “incapacidade” (disability) e “deficiência” (impairement), já que uma deficiência pode ou não causar uma incapacidade (dependendo do indivíduo e dos recursos disponíveis) e uma incapacidade pode ou não causar uma desvantagem (dependendo do contexto social). Por exemplo, uma pessoa que não tem uma das mãos (deficiência), dependendo de características individuais e dos recursos disponíveis, pode ter dificuldade ou não em conseguir realizar tarefas da vida diária (incapacidade) e, dependendo do contexto social, pode ter dificuldade para encontrar um emprego (desvantagem). Quando desconsideramos esta perspectiva, saímos por aí rotulando as pessoas, como se o problema estivesse nelas e não na sua interação com o meio em que vivem.

Estamos criando um mundo extremamente hostil a uma grande quantidade de pessoas, porque elas não se encaixam em determinados padrões. E então saímos rotulando gente e tentando criar mecanismos compensatórios, para tentar consertar o que já começou errado; sem falar naqueles indivíduos desajustados que ficam sem “rótulo”, por falta de sensibilidade humana e competência diagnóstica.

Como disse certa vez uma grande amiga (que não é deficiente), acerca da minha deficiência visual:

“Você, pelo menos, tem uma deficiência que está aparente e, portanto, pode lutar para que ela seja respeitada e levada em consideração; porém, o que fazer quando a gente tem alguma incapacidade que gera uma dificuldade para lidar com as coisas deste mundo, se esta dificuldade não tem um diagnóstico e não está aparente?”

Quando será que vamos parar de segregar as pessoas desta maneira, num total desrespeito às suas peculiaridades, necessidades e potencialidades individuais?

07. Acessibilidade para todos

Todos temos limitações visuais (ou não precisaríamos de lunetas, microscópios e telescópios), limitações auditivas (ou não teríamos amplificadores e estetoscópios), limitações da fala (ou dispensaríamos tradutores e intérpretes), limitações da locomoção (ou não existiriam carros, navios e aviões), limitações da motricidade (ou não inventaríamos ferramentas com cabos compridos, extensores, ganchos, prendedores, acionadores, dispositivos de segurança), limitações de comportamento (ou não haveria atenuantes legais para crimes realizados em situações de stress ou de forte impacto emocional).

No dia em que cada ser humano tiver a exata noção da magnitude de suas próprias limitações, a nossa especialidade deixará de existir. Neste dia, quando alguém falar em acessibilidade, ninguém mais vai pensar num monte de gente esquisita, vivendo de maneira excêntrica. Acessibilidade fará parte do currículo de todas as profissões, será coisa do dia-a-dia de todas as pessoas e especialistas em acessibilidade e usabilidade seremos todos!

08. Epílogo

Este artigo é dedicado a todos vocês, que tiveram a paciência de chegar até aqui; e muito especialmente à amiga Rosa Nobre, que não é deficiente nem tem diretamente nada a ver com acessibilidade, mas que há pouco tempo me falou o seguinte:

“Existe tanta coisa neste mundo que a gente não consegue perceber… Quem tem todos os sentidos já tem tão pouco, imagina quando falta algum?!”