Este artigo visa a explorar o conceito de memória tratado no conto Jhonny Mnemonic, de William Gibson, representado em filme em 1995, dando inclusive referência ao filme Matrix.
A ideia é avaliar a distopia do conceito de memória vista naquela época frente aos reais efeitos dela sentidos hoje com o efeito que o Google tem representado na resposta cognitiva das pessoas por terem as informações à sua disposição na ponta de seus dedos.
A ideia de memória em Jhonny Mnemonic
Uma rápida sinopse para entendimento do assunto: Jhonny Mnemonic é um cyborg que possui 180gb de memória para uso e transferência de dados. Ele é contratado para fazer a transferência de dados de uma organização, porém seus dados ultrapassam os limites do seu cérebro, preenchendo o dobro desse espaço, 320gb. Com essa quantidade de dados, Jhonny tem que rapidamente esvaziar sua memória antes que seu cérebro entre em colapso.
A distopia de como a memória seria tratada no futuro é bastante interessante. Para ter esse espaço a mais de memória, Jhonny teve que se livrar da memória da sua infância, ou seja, não sofreu uma expansão de memória, apenas trocou a memória do seu cérebro para supostamente ter um local de armazenamento controlado de memória, será isso possível? Trocar a memória a bel prazer do usuário? Ainda nessa ideia, Jhonny também está transferindo os dados de maneira segura através do mundo físico. Ou seja, em vez de se utilizar os meios digitais, os dados são inseridos no cérebro de Johnny, que os leva pelo mundo utilizando seu próprio corpo e não mais o cyber espaço.
Jhonny ainda consegue acessar essas informações ou parte delas através de recursos físicos – entre tantas distopias do filme está o uso de luvas especiais para interagir nesse cyber espaço, quando hoje temos tecnologias como o Kinect, que nos permite usar as mãos livres de periféricos como meio de interação com o meio digital.
A maior distopia do filme é projetar um futuro no qual a informação ou sua tentativa de expansão ocorre diretamente no seu cérebro.
Mas o futuro nos reservou surpresas interessantes como é o resultado do Google Effect, no qual a informação está mais expansível, porém fora do nosso corpo, no meio digital.
O efeito Google sobre a memória humana, Google Effect
Google Effect, ou efeito Google, é a tendência atual de as pessoas esquecerem as informações por poderem facilmente terem acesso a elas posteriormente utilizando sistemas de buscas na Internet, como o Google.
Tal fenômeno foi descrito e nomeado por Betsy Sparrow (Columbia), Jenny Liu (Wisconsin) e Daniel M. Wergner (Harvard) em julho de 2011.
Foi feito um estudo no qual foi proposto testar a memória das pessoas em relação àquilo que elas poderiam ou não acessar online. As pessoas do estudo demonstraram que se esqueciam mais facilmente das informações que sabiam estarem online.
Esse é o mesmo princípio do checklist no cérebro humano. Quando temos uma quantidade muito grande de tarefas a serem executadas, elas nos perturbam e consomem parte volátil de nossas memórias de curto prazo, e o cérebro, para não se esquecer de tais afazeres, nos recorda sobre eles de tempo em tempo, para que ele possa usar a memória de curto prazo para assuntos mais importantes. Assim, utilizamos o checklist, sem perceber, ao escrevermos em um documento nossas atividades – trocamos as diversas informações de recordação por apenas uma informação. Em vez de termos que recordar todas as atividades a serem executadas, lembramos apenas todos os dias de consultar o checklist de atividades e ver o que nele existe para ser feito. É por isso que o ser humano faz uso de agenda para se organizar.
O problema é que o cérebro se comporta assim também na Internet, ou seja, quando sabemos que a informação está lá em algum lugar para ser acessada quando bem entendermos, nos permitimos esquecer de tais informações. Curiosamente, o que guardamos agora são palavras-chave – ao nos recordarmos de um artigo muito interessante que lemos, já não sabemos mais o seu conteúdo por extenso, somente fragmentos e seu contexto geral, mas somos capazes de encontrar o mesmo artigo para consultá-lo, pois geralmente lembramos o nome do site, um autor, título ou meras palavras chaves que possam nos levar a ele.
Na teoria de Betsy Sparrow, professora da Universidade de Columbia, em Nova York, e autora do estudo, isso foi chamado de memória transacional. O resultado desse fenômeno é a dependência da Internet – se uma conexão online se perde, ou seja, o usuário fica offline literalmente, a sensação que ele tem é a mesma da perda de um amigo.
O estudo Google Effects on Memory: Cognitive Consequences of Having Information at Our Fingertips sugere que a população começou a usar a Internet como seu banco pessoal de dados. Para chegar aos resultados, foram realizados experimentos com mais de 100 estudantes de Harvard para examinar a relação entre a memória humana, a retentiva de dados e a Internet.
Os pesquisadores descobriram que, se os estudantes já sabiam onde as informações poderiam estar disponíveis em outro momento ou que poderiam voltar a buscá-la com a mesma facilidade, não se lembravam tão bem da resposta como quando achavam que os dados não estariam disponíveis.
O estudo mostrou ainda que as pessoas não se lembram necessariamente de como obtiveram certas informações. No entanto, tendem a lembrar onde encontraram os dados que precisam quando não são capazes de lembrar exatamente as informações. Além disso, a equipe descobriu que, quando os participantes não sabiam dar respostas às perguntas, automaticamente pensavam em seu computador como o lugar para encontrar essas informações.
Foi justamente uma experiência pessoal de Sparrow que a levou a analisar os hábitos de estudo e aprendizado das novas gerações. Ela percebeu que recorria com frequência à base de dados de cinema IMDB (The Internet Movie Database) para lembrar o nome de alguns atores.
Sparrow diz que não ficou surpresa ao constatar que cada vez mais pessoas não memorizam dados, porque confiam no fato de que podem consegui-los com suas habilidades de busca. “Somos realmente eficientes”, destaca.
Sparrow cita o doutor em Psicologia Daniel Wegner e professor Universidade de Harvard que há 30 anos já havia elaborado a teoria da “memória transacional”, referente à capacidade de dividir o trabalho de lembrar certo tipo de informações compartilhadas. Como exemplo, ele apontava um casal em que o marido confiava no fato de a esposa lembrar as datas importantes, como consultas médicas, enquanto ela confia que ele se lembrasse nomes de parentes distantes. Assim, ambos não duplicavam informações, nem “ocupavam” demais a memória.
Expansão de memória ou perda de memória
O estudo levou muitos a acreditarem que o ser humano está perdendo a faculdade da memória, isso porque alguns casos podem ser analisados no nosso próprio cotidiano. Não é incomum vermos pessoas em reuniões corporativas se recordarem de artigos lidos, mas serem incapazes de citá-los – os indivíduos sempre já ouviram falar sobre algo, mas perdem a capacidade de citar com exatidão sobre esse mesmo algo.
Muitos têm se incomodado com esse fator, que parece impedir algumas pessoas de focarem em longos textos, como livros, conseguindo apenas ler textos curtos como meio de armazenamento de informação.
Interessante pensar que o teórico Marshall McLuhan apontou isso na década de 1960, quando disse que a mídia não era senão canais passivos de informação, mas que fornecem o material para o pensamento, e esse material molda o processo de como pensamos. E, ao que parece, a reclamação de alguns está no fato de terem sentidos que a Internet tem moldado a forma como a informação é recebida e retida.
Scott Karp, que escreve neste blog sobre mídia online, confessou recentemente que percebeu que parou de ler livros por completo e atualmente só lê fragmentos, e se queixa de que isso é um reflexo de seu comportamento online.
Bruce Friedman, que escreve regularmente em blogs sobre o uso de computadores na medicina, também descreveu como a Internet alterou seus hábitos mentais. Diz que perdeu completamente a capacidade de absorver um artigo por completo.
Esperamos que existam ainda mais estudos que nos tragam experimentos neurológicos e psicológicos que demonstrem o impacto da Internet sobre a nossa cognição, pois esse efeito está apenas começando. Porém um recém-publicado estudo de hábitos de pesquisa online, conduzido pelos estudantes da College London University, sugere que podemos estar no meio de uma mudança radical na forma de ler e pensar.
Distopia x Realidade
Ao que tudo indica, os efeitos reais sobre como a memória está sendo tratada são muito mais radicais que a mera distopia do filme Jhonny Mnemonic, no qual a memória era ainda interna. Hoje temos uma memória expansível externa, mas totalmente digital, e estamos a cada dia aprendendo cada vez mais a usar palavras-chave como meio de recurso para guardar tais informações; quando não, fazemos uso de ferramentas online que possam guardar tais informações na nuvem, tal como o site www.delicious.com, um repositório de sites que você pode acessar onde quiser.
Ainda que pareça assustadora a suposta perda de capacidade de concentração e memória, sabemos que muito do que nós lemos é descartado pelo cérebro, e existe a possibilidade de que o cérebro esteja com a Internet trabalhando na sua forma mais natural, que não é linear, e sim fragmentada e cognitiva. A exemplo disso, temos o comportamento do atual usuário de Internet, que, ao se deparar com algo desconhecido em algo que está lendo, para sua leitura para pesquisar o novo assunto, que pode muitas vezes levar a outro assunto, e assim sucessivamente pela eterna cadeia de links da Internet. Tal comportamento acaba estruturando o meio de associação da informação no qual nosso cérebro está mais acostumado a trabalhar.
Será portanto que estamos perdendo a capacidade cognitiva de focar em uma leitura extensa, ou estamos atualmente filtrando a informação e retendo somente aquilo que acreditamos ser extritamente necessário, aumentando dessa forma a nossa capacidade cerebral, visto que nossa memória possui ainda a capacidade de guardar diversas informações inúteis, e nosso cérebro, ao não usar tais informações, passa a descartá-las? Não estaríamos hoje acelerando esse mesmo processo logo em seu estágio inicial?
Memória individual e coletiva, seu impacto na projeção de futuro
O interessante desses diversos estudos, é entender o comportamento do indivíduo no coletivo. O ser humano somente é capaz de projetar seu futuro baseado nas informações contidas na sua memória, ele avalia e entende as diversas possibilidades existentes do que poderá fazer no futuro baseado no seu conhecimento de vida, na sua história e em tudo que aprendeu.
Ao alterarmos parte de nossas memórias, e termos parte dessa memória no cyber espaço, pode ser que isso nos levará a uma mudança de comportamento na projeção de nosso futuro? Tudo leva a crer que sim.
Quando pensamos em alguma atividade que vamos executar, nosso poder de decisão se baseia no que conhecemos do mundo, nas nossas experiências vividas – o cérebro rapidamente traça as várias situações semelhantes que já passamos para que possamos cogitar qual a melhor possibilidade de ação disponível. Daí a dificuldade que muitas pessoas têm em explorar algo novo, por não possuírem referências se a nova atividade dará certo ou não, pois não há registros sobre isso; ao acontecer tal situação, as pessoas recorrem a familiares e amigos para terem opiniões a respeito e poderem traçar algumas rápidas estatísticas sobre a nova possibilidade de futuro.
Quando temos o Google Effect parece que isso já ocorre naturalmente, mas em uma escala muito maior de comparação. O indivíduo, ao procurar projetar seu futuro, não encontrando as informações na sua memória para método de comparação, passa a fazer rapidamente as suas pesquisas online, e vai resgatar primeiramente as suas memórias digitais. Consequentemente, consultará o coletivo, verá diversos assuntos similares à sua ideia de futuro para método comparativo, mas em vez de poucos amigos e alguns familiares ele contará com toda a comunidade online, em diversas línguas e culturas para consultar sobre as novas possibilidades.
Existe então uma perda da individualidade para um tipo de memória coletiva que está sendo depositada na Internet para que todos possam consultá-la – você não vai mais consultar exclusivamente suas memórias digitais, mas vai consultar as memórias coletivas da humanidade.
Fica a incógnita dos benefícios que existem em relação ao comportamento humano por conta desse novo processo de memória. Se por um lado perdemos parte do individualismo, temos por outro o desenvolvimento acelerado da humanidade com a ferramenta que é a Internet, que está criando e documentando a memória de toda a raça humana.