Nas
últimas semanas, dedicamos um tempo considerável discutindo a
relação entre usabilidade e cognição nos projetos de iniciação
científica do Núcleo
de Interfaces Computacionais
da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo). Embora as conexões entre Ergonomia
e Ergonomia
Cognitiva
sejam claras para a maioria dos projetistas, nossas últimas
pesquisas evidenciam uma abordagem superficial da segunda área pelos
designers, provavelmente em decorrência da complexidade dos temas
que se apresentam na psicologia cognitiva e neurociências.
Não
estou sugerindo que os trabalhos e as obras nacionais que articulam
design, ergonomia, interação humano-computador e usabilidade sejam
deficientes – basta verificar as reedições brasileiras
sucessivas dos bestsellers
da área, listados no fim deste artigo -, mas que normalmente o
espaço dedicado aos fundamentos cognitivos da ergonomia nessas
referências é resumido ou apresentado na forma de apêndices. Para
avançar na discussão, preciso recuperar a definição das duas
áreas:
-
Ergonomia:
a ciência que investiga e projeta ambientes de trabalho adaptadas
às necessidades das pessoas, normalmente dividida em ergonomia
física, cognitiva e organizacional. -
Ergonomia
Cognitiva:
uma das sub-áreas da ergonomia que investiga e procura otimizar
esses ambientes ou sistemas de trabalho conforme as propriedades da
cognição humana.
Os
autores que abordam a temática da Ergonomia Cognitiva concentram
seus esforços em descrever as funções superiores (mentais)
relativas às operações de percepção, memória e atenção, que
segundo o modelo mais popular da psicologia cognitiva, estariam
diretamente ligadas ao processamento de informação e a seus
desdobramentos na carga de trabalho, tomada de decisão, interação
humano-computador, entre outros temas.
No
entanto, a cognição não se restringe apenas ao processamento da
informação no sentido computacional
do termo, embora a origem da noção seja amplamente influenciada
pela inteligência artificial, cibernética e pelos modelos
computacionais da mente. Cognição significa saber,
conhecer,
reconhecer,
e por que não, aprender.
As teorias psicogenéticas, por exemplo, investigam a gênese dos
processos cognitivos para compreender como os seres humanos aprendem
e se desenvolvem ou como se desenvolvem e aprendem – a própria
ordem desses acontecimentos é um debate amplo que escapa aos
objetivos deste artigo.
Retomando
a conexão entre Ergonomia e Ergonomia Cognitiva, podemos entender
que se a primeira está interessada na interação macro entre os
indivíduos e o ambiente (físico ou das interfaces computacionais
ou das organizações), a segunda estaria focada nos processos
mentais que permitiram que os indivíduos conheçam
e
reconheçam
as formas de interação com esse ambiente: não apenas linguagens,
modelos mentais, fluxos e seqüências de operação, mas também
desejos, expectativas e emoções correlacionadas.
Nossa
abordagem, no NIC, baseia-se na hipótese de que conhecer é um
processo de aprendizagem por excelência, e o ser
humano-usuário-consumidor é um aprendiz exigente e muitas vezes
impaciente: só aprende o que lhe interessa, quando e como quiser.
Nesse cenário, as questões centrais da usabilidade – ser
eficiente e satisfatório no uso, além de fácil de aprender –
estão subordinadas a um processo amplo de aprendizagem e
desenvolvimento. Isso significa não apenas repensar como investigar
eficiência e satisfação no contexto de algo que precisa ser
aprendido, mas considerar que a aprendizagem em si é um processo
complexo que emerge a partir de interações muito simples e que
ainda assim não pode ser explicado pela soma delas.
A
educação
[para o uso de algum artefato próprio da nossa cultura], na
perspectiva dos principais autores de referência das nossas
pesquisas atuais – Jean Piaget, Lev Vygotsky, Alexis Leontiev, Yrjö
Engeström, Seymour Papert, Humberto Maturana & Francisco Varela
e mais recentemente Sugata Mitra – “é
um sistema auto-organizado onde a aprendizagem é um fenômeno
emergente“.
Nesse sentido, nos interessam as iniciativas metodológicas que
buscam compreender como os seres humanos aprendem nas mais diversas
condições, com o mínimo ou sem nenhuma de supervisão, e como se
desenvolvem a partir desse aprendizado, tornando-se aptos a realizar
coisas cada vez mais interessantes (para eles mesmos).
Sugiro
um
exemplo final, para ilustrar as diferenças de abordagem. Uma
investigação ergonômico-cognitiva de um player
de mídias digitais poderia seguir dois rumos bem distintos:
-
A
abordagem do processamento
da informação,
na perspectiva da aplicação direta das teorias cognitivas
relativas aos processos de percepção, atenção e memória e suas
implicações para o projeto de uma interface mais fácil de
aprender a usar, mais eficiente e mais satisfatória – menor
número de operações para se atingir um objetivo, fluxos claros,
metáforas consistentes, redução da carga de trabalho, uso de
linguagem conhecida do usuário, respeito às normas, padronizações
e convenções pré-existentes e às questões antropométricas
típicas da população-alvo e do objeto em questão. A avaliação
da performance é baseada na medição do desempenho do usuário na
realização de tarefas diversas. O
objetivo é o acerto. - A
abordagem da aprendizagem,
que apesar de considerar todas as questões típicas da vertente do
processamento da informação, não pode ser explicada por elas.
Essa abordagem tem como objetivo último auxiliar o indivíduo a
aprender ouvir ou assistir seus arquivos de mídia, independentemente do
seu domínio dos recursos e operações encontrados no dispositivo.
A avaliação do processo é baseada exclusivamente a partir dos
anseios do usuário em relação a ouvir músicas ou a assistir
a vídeos: o que ele deseja fazer e consegue atingir por conta própria
ou com o mínimo de supervisão. O
objetivo é aprender, mesmo que seja por meio do erro.
Uma
comparação simples e bastante realizada entre as interfaces
desenvolvidas
pela Apple e as de outros fabricantes pode explicitar as diferenças
de foco: não há distinção entre o que o usuário deseja fazer e a
interface que media essa operação.
Vídeo Walkman da Sony |
Ipod Touch da Apple |
Botões,
diálogos e demais controles são exibidos à medida que o usuário
precisa deles, e aprende por
que
precisa deles. John Maeda explica essa estratégia nas suas Dez
Leis da Simplicidade – o
conhecimento torna tudo mais simples:
começar oferecendo o básico, repetir as informações fundamentais,
controlar-se quanto aos anseios de confundir os usuários com uma
profusão de recursos e principalmente inspirá-los a fazer cada vez
mais com o básico que já sabem, para no futuro, quem sabe, deixar
que eles mesmos optem por aprenderem mais sobre o que estão fazendo.
Em
outras palavras, na perspectiva da aprendizagem interessa pouco se
uma determinada operação no player
foi realizada com mais eficiência, com o menor número de etapas ou
com menor incidência de erros, mas se o indivíduo está satisfeito
ouvindo sua música favorita e se ele conseguirá repetir essa mesma
atividade prazerosa com cada vez mais fluência, segundo seus
próprios critérios e expectativas de auto-avaliação.
Uma
boa estratégia de investigação ergonômico-cognitiva, no melhor
estilo Seymour Papert ou Sugata Mitra, é entregar o dispositivo para
o usuário, passar uma tarefa interessante, intrigante ou desafiadora
e desaparecer por dois meses :).
Dicas
de livros
1: boas leituras em ergonomia, mas deixam a desejar em cognição
- Ergonomia
do Objeto – João Gomes Filho - Design
de Interação:
Além da interação humano-computador – Preece, Rogers & Sharp - Ergonomia:
Projeto e Produção
– Itiro Iida - Ergonomia
Prática – Dul & Weerdmeester - Ergonomia
e Usabilidade – Walter Cybis
Dicas
de livros
2: um pouco mais de cognição
- O
Erro de Descartes – António R. Damásio - O
Design do Dia-a-Dia
e Design
Emocional – Donald Norman - Como
a mente funciona –
Steven Pinker - A
Árvore do Conhecimento – Maturana & Varela - Seis
Estudos de Psicologia – Jean Piaget - O
desenvolvimento do psiquismo – Alexis Leontiev - A
Formação Social da Mente – Lev Vygotsky - Design,
Ergonomia, Emoção –
Claudia Mont’Alvão e Vera Damazio (Orgs)