Existem várias coisas na comunidade ágil e lean que me atraem. São ideias muito familiares dentro das minhas predisposições mais antigas sobre o que é justo e correto. Ao mesmo tempo, elas são também deliciosamente utópicas e se colocam como um objetivo sempre fugaz, o que me faz querer fazer isso para o resto da vida.
Alguns exemplos:
– No mindset ágil, os times são autogerenciáveis e devemos construir o espaço para que eles se auto-organizem e tomem suas decisões em prol do que for melhor;
– Devemos pagar aos membros do time o suficiente para que dinheiro não seja uma constante preocupação e que eles possam focar em fazer um trabalho maravilhoso;
– Todos os membros do time são vistos como iguais, contribuindo cada um com suas habilidades e visão particulares, criando um time multidisciplinar.
Só que vivemos em um ambiente regido pelas premissas do fordismo e pela gestão industrial e de produção em série. Este método de gerenciamento foi criado para lidar com as atividades físicas de trabalhadores marginalizados e, ainda assim, estamos constantemente sujeitos a práticas que, mesmo quando bem intencionadas (como bônus por resultados), simplesmente não funcionam na nossa área de atuação.
Quando você oferece um bônus pelo atingimento de um resultado específico, você cria um cenário em que a inovação e a qualidade são deixadas de lado em prol de atingir aquela métrica específica. Os esforços serão voltados para atingir a meta e ela apenas, mesmo que haja formas melhores, mais baratas e fantásticas de trazer valor ao negócio. Você começa a trabalhar pelo bônus, pondo a perder tudo que o trabalho criativo pode acrescentar à sua carreira e à sua empresa.
Existem muitas questões derivadas dessa mentalidade na comunidade ágil. A que me incomoda mais frequentemente é a ideia de que testes padronizados são mais importantes que a experiência. Há algum tempo, eu estava discutindo certificações com um Scrum Master com quem trabalho e ele mencionou que sua certificação era menos valorizada porque o teste era muito fácil, ou porque a instituição oferecia o treinamento, mas não um teste. Perguntei a ele qual, em sua visão, seria uma opção melhor. Ele mencionou outra certificadora que não dava treinamento, só fazia o teste.
O motivo pelo qual essa crença me incomoda é o mesmo do bônus como incentivo. Na minha experiência, observei pessoas decorando o Scrum Guide e os princípios do Manifesto Ágil, fazendo uso inclusive de cards e técnicas de memorização. Vi membros de times scrum que estão frequentemente causando turbulência no time, omitindo informação, centralizando decisões e agindo como ditadores ao se gabarem de quantos pontos fizeram em uma determinada certificação. Tive que lidar com um time de indivíduos certificados que se recusava a fazer estimativas porque “essa transparência é desnecessária”.
Agora me explica como uma dessas pessoas pode ser melhor do que alguém que não tem certificado, mas verdadeiramente segue os princípios do ágil?
Ágil é mindset. É uma profunda e muitas vezes dolorosa mudança de cultura. Para mim, um profissional certificado que age constantemente contra estes princípios não é um agilista, mas um trapaceiro. Eles não são melhores que alguém que leva cola para uma prova e esconde debaixo da palma da mão. Não seja essa pessoa. Seja alguém com quem você gostaria de trabalhar, que vê críticas como uma forma de se aprimorar e a experiência como a única forma certeira de saber se você está certo ou errado.
Ter uma certificação aparentemente faz algumas pessoas relaxarem e ganharem uma autovalorização e autoridade que vai contra tudo o que a mentalidade ágil defende. Isso significa que deveríamos deixar de certificar pessoas? Certamente que não. Mas precisamos tratar o fator desonestidade que vem da postura deboísta, da atitude “não posso ser questionado!” que vem depois da certificação. Ouvi pessoas, literalmente, dizerem “sou certificado” e em seguida assumir o comportamento mais destrutivo e anti-ágil possível. Precisamos de treinamento. Precisamos de empatia. Precisamos de honestidade. Precisamos de coragem. Precisamos de interações e não de processos.
É óbvio que testes padronizados não estão sendo eficientes. Talvez pudéssemos pensar em como recriar (e co-criar) as certificações, para que o time e o instrutor passem por uma série de atividades realistas e a certificação fosse o resultado do conhecimento adquirido por meio destas experiências reais, incluindo critérios como empatia, escuta ativa, recebimento de feedback, priorização de pessoas sobre processos e ser capaz de identificar suas forças e fraquezas para poder trabalhar nelas.
Ou talvez eu seja uma sonhadora.
Só espero não ser a única.
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Algumas referências usadas neste post: Agile Manifesto e Daniel Pink.