“Samanta: Você acha isso esquisito? Você me acha esquisita?
Teodoro: Mais ou menos.
Samanta: Por quê?
Teodoro: É que você parece uma pessoa, mas é na verdade apenas uma voz dentro de um computador.
Samanta: Entendo que a perspectiva limitada de uma inteligência não artificial pense assim. Mas você vai se acostumar.
[Teodoro ri]
Samanta: Você achou isso engraçado?
Teodoro: Sim.
Samanta: Que bom! Eu sou engraçada!”
(Tradução do diálogo original feita pelo autor do artigo)
Há duas semanas assisti o filme “Ela” em preparação para uma entrevista a um jornal brasileiro. Eu sabia que iria encontrar algo mais próximo de ficção científica do que realidade, mas o filme me mostrou uma surpreendente conexão com as possibilidades futuras. Foi particularmente interessante ver que o futuro retratado no filme mostra uma tentativa sincera de conciliar a evolução da tecnologia com o que nossos olhos e corações reconhecem, como cartas escritas à mão e móveis em madeira. Eu sempre acreditei que o melhor futuro para a tecnologia é torná-la o mais transparente possível, para que possamos apreciar as coisas humanas, para as quais nossos olhos foram feitos, em primeiro lugar.
Mas a entrevista foi pragmática e me perguntou diretamente sobre o quão longe estamos dessa realidade, onde os computadores podem interagir com seres humanos, aprenderem sobre tudo o que sabemos e sentimos para então expressarem sentimentos e criatividade próprios. Em termos mais técnicos, queremos saber quando que os computadores vão passar no teste de Turing (1950), quando eles poderão ser indistinguíveis de seres humanos em um teste cego. Esses computadores teriam que apresentar um comportamento muito semelhante ao nosso, pois somos muito bons em detectar quando algo soa estranho.
É comum associarmos Inteligência Artificial (IA) a robôs humanóides ou à ameaça de eventualmente sermos demitidos porque os computadores inteligentes poderão fazer nossos trabalhos com maior eficiência. IA, no entanto, é muito mais comum do que se imagina. É graças à IA que temos menos e-mails de SPAM em nossas caixas de entrada, que recebemos recomendações de vídeo do Netflix depois de apontarmos os filmes que gostamos de assistir, que a Siri ou o Google Now conseguem entender o que falamos, que alguns carros são mais estáveis que outros, que apps são capazes de entender o que escrevemos à mão em nossos tablets, que conseguimos ter um texto traduzido de uma língua para outra em um instante e que os vilões de alguns jogos do Xbox ou PS4 parecem se comportar de maneira inteligente. Há muitos outros exemplos em nosso dia a dia.
Cada exemplo que menciono acima, no entanto, vem de diferentes áreas de IA, como redes neurais, lógica fuzzy, algoritmos genéticos, processamento de linguagem natural e sistemas baseados em conhecimento. IA está longe de ser um campo unificado e isso deve ser visto como muito positivo. Esta diversidade de abordagens tem interseção, em diferentes intensidades, com diferentes áreas do conhecimento como filosofia, matemática, psicologia, neurociência, linguística e biologia, entre outros. É esta natureza fragmentada de IA que a torna potencialmente transformadora. Em vez de revolucionário, IA é um campo claramente evolucionário.
O que vemos no filme é chamado de “IA forte” ou “IA geral”, definida como uma “inteligência artificial hipotética que demonstra inteligência semelhante à humana – a inteligência de uma máquina capaz de realizar com sucesso qualquer tarefa intelectual de um ser humano”. Hoje, não existe ainda algo que chegue nem mesmo próximo disso, apesar de estarmos melhorando ano a ano a passos largos.
Mas, voltando à pergunta que me foi feita, o quão longe estamos do que vemos no filme?
O “computador” que carregamos em nossas cabeças evoluiu durante milhões de anos até seu estado atual de uma máquina orgânica ultra-eficiente capaz de executar um número enorme de cálculos e tarefas paralelas com seus 90 bilhões de neurônios e mais de 100 trilhões de conexões entre eles. Ele pode funcionar por horas a fio com a energia que nosso corpo retira de uma refeição comum. Compare isso com a conta de 1 milhão de dólares mensais para manter funcionando um dos mais velozes supercomputadores da atualidade.
Se partirmos do princípio que tudo o que nos faz humanos vem de nossos cérebros e de nossas interações com outros cérebros e com o nosso meio ambiente, não há nenhuma razão para acreditarmos que no futuro os computadores que construímos para simular o cérebro humano não apresentarão comportamentos semelhantes aos dos seres humanos.
Se olharmos para os exemplos no reino animal, vemos que não são apenas os humanos que apresentam inteligência e maior inteligência está diretamente relacionada à complexidade da estrutura do cérebro do animal. Além dos humanos, apenas alguns primatas, golfinhos, orcas, elefantes e – pasmem – uma ave chamada “pica-pica” encontrada na Europa e Ásia, são capazes de se reconhecerem no espelho e demonstrarem altos níveis de complexidade em suas interações do dia a dia, envolvendo comunicação, estratégias, comportamentos sociais e “sentimentos”. Os identificadores de padrões nos cérebros de todos os animais e dos seres humanos não são diferentes um do outro, a diferença é que os seres humanos possuem um número muito maior deles, trazendo a capacidade de operarem em níveis superiores de abstração.
Se acreditamos que seremos capazes de construir uma estrutura computacional que funcione como um cérebro tão complexo como o cérebro humano, podemos supor que inteligência, auto-conhecimento, auto-consciência, capacidade de aprendizado autônomo e de manifestar sentimentos poderiam emergir da complexidade de tal estrutura. E a partir das crescentes interações desses IAs entre si e com os seres humanos (no filme Samanta interagiu com milhares de pessoas ao mesmo tempo, bem como com outros IAs), teremos a oportunidade de ver coisas inimagináveis acontecerem.
Alguns futuristas, como Ray Kurzweil, que atualmente trabalha no Google, acreditam que na próxima década os computadores excederão a capacidade computacional do cérebro humano (se medida em FLOPS ou operações de ponto flutuante por segundo), e que em 30 anos um único computador terá mais poder computacional do que todos os cérebros do planeta juntos. Ele faz suas previsões com base no ritmo exponencial de desenvolvimento da tecnologia mais ou menos comprovado pela lei de Moore. Se ele estiver correto, até 2030 poderemos ver um IA como Samanta se tornando realidade. Kurzweil também acredita que até 2045 vamos ter computadores do tamanho de moléculas dentro de nossos corpos e cérebros com a tarefa de proteger a nossa saúde e amplificar nossa capacidade cognitiva. Nosso cérebro poderá se conectar à nuvem e conseguir o auxílio de supercomputadores em frações de segundo. O futurista chama este estado futuro da tecnologia de singularidade, um termo que físicos como eu usam para designar um ponto em que qualquer avanço de uma variável leva a um avanço infinito em uma outra variável correlata. Em outras palavras, as máquinas serão tão inteligentes que elas vão fazer a tecnologia avançar de uma forma tão acelerada que nós humanos não seremos mais capazes de compreender ou acompanhar. Nossa única saída será conectar nossos cérebros à IAs.
Você pode pensar que 30 anos é pouco para tamanha transformação, mas isso é provavelmente porque você está pensando de forma linear. Exponenciais fazem toda a diferença, pois fala de uma capacidade que dobra a cada período regular de tempo. Há 30 anos, quando o Apple Macintosh foi revelado para o mundo, foi considerado revolucionário. Em 30 anos, a Apple conseguiu construir um telefone cuja capacidade computacional é quase 200 milhões de vezes maior que a do primeiro Macintosh. E pensar que há pouco mais de 100 anos atrás eletricidade era uma coisa raríssima dentro de uma casa. Projetando 30 anos a partir de agora, a ideia de que nós vamos ter computadores do tamanho de moléculas, alguns bilhões de vezes mais poderosos do que o iPhone de hoje não parece ser uma ideia tão maluca assim.
O grande desafio que vejo nessas previsões ousadas é que poder computacional não parece ser suficiente para chegarmos neste estado futuro, onde computadores passam o teste de Turing. O mais poderoso supercomputador de hoje é capaz de simular um segundo de apenas um por cento do nosso cérebro, mas leva quase uma hora para fazê-lo. Isso mostra a distância que estamos de simular o cérebro humano em todo o seu esplendor. Eu não tenho dúvida de que, até 2045, em termos de FLOPS, teremos computadores insanamente rápidos, mas o software correto, aquele cuja execução realmente possa simular o cérebro humano, também é necessário. A nossa compreensão de como o cérebro funciona e como construir software que o imita terá de evoluir de forma exponencial também.
De iniciativas como o “human brain project” na Europa, computadores quânticos (que podem acelerar o desenvolvimento de IA), nanotecnologia e sérios avanços em neurociência que já estão acontecendo, eu acredito que teremos exemplos de IA forte acontecendo em menos de 30 anos. Ou ao menos teremos agentes inteligentes que passarão a aprender e desvendar conosco os segredos do universo.
Concluo este artigo pedindo desculpas antecipadas pelo spoiler que vem em seguida (caso você ainda não tenha visto o filme)…
Quando o filme atinge o climax de seu conflito, o interesse de Samanta por música, física e filosofia evolui rapidamente e ela e outros AIs tomam a decisão de se afastarem das interações com os seres humanos para partirem em suas buscas por conhecimento. É plausível que, em um mundo de máquinas ultra-inteligentes, os seres humanos seriam considerados inferiores ou incapazes de acompanhar o ritmo exponencial de aprendizado. Perto do final do filme, é bastante curioso quando Teodoro pergunta onde Samanta estava indo e ela responde: “é difícil de explicar, mas se você chegar lá, procure-me. Nada poderá nos separar então”. Para mim, esta foi uma alusão ao fato de que os seres humanos podem, um dia, ser imortais através da transferência de suas consciências para agentes de IA. Por enquanto isso é pura ficção científica, mas que pode se tornar realidade quando pensamos exponencialmente 30 anos à frente dos próximos 30 anos.