P.s.: O Ministério da Saúde adverte: esse artigo contém diversas opiniões políticas polêmicas.
Você está empolgado? Eu estou. Vou te dizer o quanto: a primeira vez que fiquei realmente empolgado com uma tecnologia foi em 1998, quando fui conhecer a Internet, ainda criança. A segunda vez? O bitcoin.
Uma das frases mais batidas dos últimos anos vai bem nessa linha: o blockchain é a tecnologia mais disruptiva desde a internet.
A ideia desta série de artigos é justamente mostrar por que tem tanta gente animada com o bitcoin, blockchain, ethereum e todo esse novo ecossistema que se formou baseado na descentralização.
Os artigos são longos porque precisam ser. Sem o devido contexto, você, no máximo, vai conseguir entender o como e não o que mais importa: o porquê.
Bitcoin
Antes de qualquer coisa, vamos definir o que é o bitcoin: uma moeda digital deflacionária descentralizada que permite transações sem intermediários.
Ok. Você continua perdido.
Para que você possa realmente entender essa definição, vamos precisar dar um mergulho em um dos conceitos mais importantes da economia. E, pra isso, que tal começarmos pela série La Casa de Papel?
Ela retrata o golpe perfeito: oito criminosos liderados pelo professor, têm uma meta simples: roubar, mas sem roubar de ninguém. A ideia é ir até a Casa da Moeda, o órgão responsável pela impressão das notas de euros, e imprimir a maior quantidade de dinheiro possível. E, pra isso, eles têm que ficar dentro da Casa da Moeda pelo maior tempo que puderem. Tempo é dinheiro, afinal.
Maravilha né? É o roubo do bem. Um roubo millenial, vegano, sem glúten. Só tem um problema: quando os criminosos imprimiram 1 bilhão de euros, eles roubaram de todos nós ao mesmo tempo. E nos roubaram do mesmo jeito que o governo nos rouba todos os anos, pela inflação.
O que é a inflação?
Digamos que o tomate custe hoje R$10,00/kg. Semana que vem, vamos no mercado de novo, e ele passou pra R$16,00/kg. Mais de 50% de aumento em uma semana? Eita!
Mas se acalme. Isso pode ter diversas causas. Por exemplo, pode ter acontecido uma mudança climática que gerou uma seca em grande escala. Com isso, menos tomates estarão disponíveis, já que grande parte deles apodreceu devido à seca. Mas a procura por tomates se manteve igual, então o preço subiu.
O que eu acabei de descrever acima é um dos conceitos mais básicos da economia, a famosa Lei da Oferta e da Procura.
Em resumo, essa Lei diz o seguinte:
- Muita oferta e pouca procura = os preços descem
- Pouca oferta e muita procura = os preços sobem
Dito isso, quando alguns poucos itens no mercado sobem de preço, isso pode ter diversas causas. Sem problemas, faz parte do jogo.
Agora, quando há um aumento generalizado dos preços não tem jeito: está rolando uma expansão monetária (aumento do dinheiro em circulação). E pela Lei da Oferta e da Procura, se temos mais dinheiro em circulação, mas os bens e serviços se mantiveram estáveis, então o nosso dinheiro está valendo menos do que antes.
E isso, meus jovens, é a maldita inflação.
Fernando Ulrich sobre as causas da Inflação
Resumindo:
- Bens e serviços continuam iguais, mas
- houve um aumento expressivo da quantidade de dinheiro circulando na economia, então
- os preços vão aumentar, e nosso dinheiro vai se desvalorizar.
Nesse ponto, espero que você tenha entendido porque os assaltantes da série La Casa de Papel roubaram toda a população ao mesmo tempo ao imprimir 1 bilhão de euros de uma vez.
Os culpados
Mas quem provoca a inflação? Bem, se a inflação vem do aumento da quantidade de dinheiro de forma descontrolada na economia, obviamente o culpado só pode ser um: quem tem o poder de imprimir o dinheiro.
E quem tem esse poder?
O melhor amigo de todo o brasileiro, o governo (pra ser mais exato, uma parte dele: o Banco Central).
E por que o governo injeta dinheiro novo na economia, e muitas vezes de forma descontrolada? Ué, porque ele ganha com isso.
Mas antes de entender como eles ganham, vamos ver primeiro quem perde. Se você chutou os mais pobres, parabéns. São eles mesmos. Não apenas os mais pobres: os aposentados e basicamente todo mundo que depende de um salário fixo mensal perdem com a inflação. Ou seja, quem tá embaixo.
Os mais ricos, por outro lado, sabem se proteger porque:
- eles não dependem de salário mensal, e
- eles não têm dinheiro parado, tá tudo aplicado. E grande parte dessas aplicações rendem mais que a inflação.
Já ouviu falar num investimento chamado Tesouro Direto? Uma das modalidades mais conhecidas do Tesouro, o NTN-B, paga seja lá o que a inflação for e mais um pouco.
Ou seja, pra eles tá sempre tudo bem.
Mas e pro seu João, carpinteiro de 57 anos, que vive no interior da Paraíba? O seu João nunca teve sequer uma conta no banco. Corretora de investimentos, então? Nunca ouviu falar. O pouco de dinheiro que sobra, ele guarda dentro de casa mesmo. Só que com uma inflação alta, esse dinheiro vai valer cada vez menos.
Inflação não tem jeito, quem fica com a conta são os mais pobres.
Ok, mas se a gente já sabe o que causa a inflação e a gente sabe que ela é ruim, por que os governos do mundo continuam provocando-a? Como eu tinha dito lá em cima, porque o governo ganha com isso. Mas chegou a hora de entender como.
Por que os governos causam a inflação?
É bem simples na verdade. Os governantes prometem o que não podem cumprir (sério? jurava que eles não faziam isso. rs). E pra conseguir os recursos necessários pra realizar o que foi prometido, existem duas opções:
- cortar gastos públicos (ruim pra eles)
- aumentar os impostos (ruim pra nós)
Sobra então a saída fácil: botar as impressoras pra funcionar, faz a grana que precisa e o seu João do interior da Paraíba (indiretamente) vai ficar com a conta.
Meus jovens, a inflação no final das contas é só mais um imposto. Você não votou a favor, mas vai ser obrigado a pagar mesmo assim.
Ou como diz Milton Friedman:
“A inflação é a única forma de taxação que pode ser imposta sem legislação”
Profundo, né? A propósito, isso não é de hoje. Um dos argumentos mais sólidos sobre a queda do Império Romano está ligado à inflação descontrolada que aconteceu na época.
Quer saber como isso aconteceu? Então chega mais, ajeita a postura e pega um café que eu te conto.
Roma Antiga
Perto de VIII a.C., Roma surgiu como um vilarejo simples. Por mais de 500 anos o dinheiro usado era formado por bens simples, como trigo e sal.
P.s.: informação completamente inútil: a palavra “salário” vem de “sal”, justamente por causa dessa época. Como não haviam geladeiras, uma das únicas formas de se preservar a carne era com o sal, que acabou virando meio de pagamento.
Até que os romanos resolveram copiar os gregos e passaram a usar moedas como forma de pagamento. A primeira delas foi o Asse. Ela era bastante pesada, com aproximadamente 300g de bronze.
Poucos anos depois da introdução do Asse como moeda, Roma entraria em uma guerra de 23 anos de duração contra Cartago, que ficou conhecida como a Primeira Guerra Púnica. Já te adianto o spoiler: Roma venceu. Mas o que realmente importa é como venceu: inflacionando a própria moeda.
O exército de Cartago era enorme pra época, segundo um historiador da época:
“(…) este exército era composto por 50 000 homens na infantaria, 6 000 na cavalaria e 60 elefantes de guerra”
Pra Roma vencer, ia precisar mobilizar um exército mais forte ainda. E qual a forma mais fácil de se fazer isso? Tendo dinheiro, lógico.
Só que Roma não tinha de onde tirar esse dinheiro, então, os governantes foram produzindo novos Asses. E como não tinham de onde tirar tanto bronze pra fazer cada moeda de 300g, foram aos poucos diminuindo o tamanho de cada moeda e por lei forçaram que elas valiam a mesma coisa do que antes.
Era o plano perfeito. Conseguiram gerar dinheiro do nada, o que deu pra bancar os enormes custos da guerra. Sucesso né? Não. O problema foi que depois de alguns poucos anos de cunhagem de novas moedas do nada, o Asse ficou tão desvalorizado que a população parou de ter confiança na moeda.
Os governantes tiveram outra ideia. Que tal se a gente substituir, então, o Asse por outra moeda? Foi aí que surgiu o Denário. Denário vem do latim denarius, que significa “contém dez”, porque cada unidade valia 10 Asses (conte para o seu crush: a palavra “dinheiro”, vem de “denário”).
Mas não tem jeito. Não adianta ficar mudando de moeda se a política continua igual. E foi igual. Pouco tempo depois da adoção do Denário, o povo romano viu que tinha treta e, de novo, parou de usar a moeda e voltou a usar coisas mais sólidas como o ouro, prata e o bom e velho sal.
Pra não alongar muito, o resumo da ópera é que: toda essa instabilidade financeira gerou também uma instabilidade política que eventualmente culminou na queda do Império Romano. Se você quiser ler mais sobre isso, dá uma olhada aqui e principalmente aqui.
Mais de 2.000 anos depois do fracasso do Império Romano e (praticamente) não aprendemos nada:
O gráfico acima mostra a inflação mensal no Brasil da década de 80/90. Note que tem meses que a inflação bate 80%. Ou seja, em apenas um mês os preços do supermercado praticamente dobraram.
Isso ajuda a explicar inclusive a cultura do brasileiro de ir ao supermercado fazer compras de mês. Em praticamente nenhum lugar do mundo as pessoas fazem isso, geralmente o mais comum são compras menores semanais. Mas devido à inflação, o brasileiro aprendeu que, assim que receber o salário, ele deve ir direto ao supermercado, comprar o máximo possível e fazer estoque.
Vou voltar pro Bitcoin em breve! Não vá embora!
Esse período foi tão ruim (não só no Brasil, mas em grande parte da América Latina) que ficou conhecido como a Década Perdida. Durante esse tempo, nós tivemos estagnação econômica, controle de preços, retração da produção industrial, dentre outras maravilhas.
Até que o Plano Real entrou em vigor e resolveu a hiperinflação no Brasil. Compare os índices dos últimos anos e veja a diferença:
Mesmo assim, tivemos momentos ruins principalmente em 2002 (transição do governo FHC/Lula) e em 2015 (Dilma), quando tivemos inflação de dois dígitos, o que é muito mais alto do que a grande maioria dos economistas recomendam.
Pra ter uma ideia, se a gente for pegar a inflação acumulada desde que o Real foi criado, em 1994, a moeda perdeu mais de 80% do seu valor de compra. Ou seja, os R$100 de antigamente hoje valem menos do que R$20.
Isso porque o Real é uma das moedas mais estáveis que o Brasil já criou. Não preciso nem falar sobre o Cruzeiro e o Cruzado pra provar meu ponto.
Nota de rodapé: algumas escolas econômicas (principalmente a Keynesiana) acreditam que a inflação alta é saudável e consegue até mesmo ajudar no crescimento da economia. Acredito que esse debate está fora do escopo desse post, mas independente de qualquer coisa: a imensa maioria dos economistas tem como fato que uma inflação descontrolada é terrível para a economia.
Voltando pro bitcoin…
Mas o que todo esse blá-blá-blá sem sentido tem a ver com o bitcoin? Eu explico! Vamos revisar a definição que foi apresentada no começo desse artigo: O bitcoin é uma moeda digital deflacionária descentralizada que permite transações sem intermediários.
A palavra mágica aqui é: deflacionária.
Deflação
Deflação é igual inflação. Só que ao contrário. Ao invés de uma moeda valer menos a cada dia (como acontece com o nosso querido dinheirinho), uma moeda deflacionária tende a valer mais a cada dia.
Por quê? Lei da Oferta e da Procura de novo. No caso do bitcoin, a quantidade total da moeda em circulação será de 21 milhões (nesse momento, existem aproximadamente 17 milhões). Ou seja, nós sabemos que a oferta da moeda é fixa e ela vai continuar assim.
Então, se cada vez menos bitcoins são criados (mais sobre como acontece a magia da criação dos bitcoins num artigo futuro) e a procura pela moeda continuar aumentando, não tem jeito: o preço sobe junto.
Observe o gráfico abaixo:
A linha azul mostra que cada vez menos bitcoins serão criados, e com isso, a linha vermelha mostra a inflação da moeda despencando. Ou seja, o bitcoin vai ajudar a combater a inflação desenfreada provocada por governos irresponsáveis e que atingem justamente a camada de baixo da população.
E essa pode ser a diferença entre passar fome ou não.
Em casos mais absurdos, como na Venezuela atual, a inflação vem piorando a cada ano. E somente em 2017, foram incríveis 4.651% (!!!).
Com essa crise, que parece sem solução, o povo venezualano vê o bitcoin como o refúgio monetário ideal para fugir das variações absurdas que a moeda local sofre e para, literalmente, não ter que passar fome.
Isso, inclusive, pode estar por trás da valorização expressiva que o bitcoin começou a ter nos últimos anos, principalmente em 2017.
Talvez você esteja se perguntando se o fenônemo da inflação só acontece em em países de terceiro mundo, como os citados Brasil e Venezuela. Na verdade não. Olha o que aconteceu com o dólar somente no período de 1913–2013:
Um dólar em 1913 valia em 2013 menos do que 6 centavos de dólar.
No livro Paper Money Collapse, o autor argumenta que o dinheiro fiduciário (dólar, euro, real e outras moedas sem lastro) não apenas é desnecessário, como gera dívidas (os EUA agora devem $21 trilhões) e sempre vão ter seu valor reduzido a zero, como o gráfico dos dólares acima demonstra. Segundo o autor, não existem exceções pra isso. E a história sempre mostra o mesmo resultado.
E com isso, meus amigos e minhas amigas, temos o primeiro grande porquê do bitcoin ser uma reserva de valor contra governos que usam a artimanha de imprimir dinheiro de forma descontrolada em benefício próprio, deixando a conta pra quem justamente o governo deveria se importar mais: a camada de baixo da população.
Mas essa é somente uma das vantagens do bitcoin. E, além disso, tenho certeza que você ainda tem muitas dúvidas sobre como ele realmente funciona e quais outros impactos ele pode trazer.
Então, fique ligado que a série continua. Até a próxima!
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Artigo original publicado em: https://www.concrete.com.br/2018/05/16/o-porque-do-bitcoin-parte-1-la-casa-de-papel-a-roma-antiga-e-a-decada-perdida/