DevSecOps

11 set, 2013

Mitch Altman e a origem dos hackerspaces

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Se pudesse resumir em uma frase o que de fato motiva o hacker e cofundador do Noisebridge, hackerspace da cidade de São Francisco, seria incentivar pessoas a formar comunidades para fazer coisas que elas amam. E é exatamente isso que Mitch faz há muitos anos conhecendo hackerspaces pelo mundo todo, ensinando pessoas a fazerem coisas legais com eletrônica e promovendo oficinas de solda com os seus kits de hardware livre.

Mitch Altman foi um dos pioneiros no trabalho com Realidade Virtual na VPL Research, também é conhecido por inventar o controle remoto universal, o TV B-Gone, um chaveiro que desliga qualquer TV em espaços públicos. A mensagem é simples: “You control when you see TV, rather than what you see”. Também é criador do “Brain Machine”, um dos projetos DIY mais populares da Make Magazine, além de presidente e CEO da empresa Cornfield Electronics.

Esse entusiasta da tecnologia esteve no Brasil, e a sua parada inicial, antes de palestrar no 14º Fórum Internacional de Software Livre (FISL), foi dar workshops de solda primeiramente no Mate Hackers, hackerspace de Porto Alegre, em 28 de junho, e posteriormente no Garoa Hacker Clube, hackerspace de São Paulo, em 30 de junho. Participei da sua oficina no Garoa, e foi um sucesso, com várias pessoas montando os seus kits e trocando ideias sobre eletrônica. Também pude conversar com ele sobre hackerspaces e as suas motivações.

hackerspaces 1Mitch dando workshop de solda no Garoa Hacker Clube

Para Mitch Altman, hackerspaces são espaços ímpares, não existe uma forma única de como esses espaços devem ser, e o que os caracteriza é serem espaços autênticos e anárquicos. Não há um centro de poder ditando o que você pode ou não fazer. Todos podem desenvolver projetos, compartilhar conhecimento e explorar os limites do que pode ser feito com qualquer tecnologia. Essa essência é o que o faz Mitch ajudar hackerspaces a crescerem e criarem as suas próprias raízes.

A sua inspiração para fundar o Noisebridge, e como a de alguns outros hackers dos EUA, foi ter participado do Chaos Communication Camp em 2007, na Alemanha, evento quadrienal organizado pelo Chaos Computer Club desde 1999, que reúne hackers do mundo todo acampados com acesso à Internet para discutirem assuntos técnicos e sociais como privacidade, liberdade de informação e segurança de dados. As palestras são feitas em hangares de um aeroporto desativado da ex-Alemanha soviética, no qual temporariamente hackerspaces se instalam de forma itinerante em um grande acampamento tecnológico.

hackerspaces 2Foto de Nicohofmann/ Chaos Communication Camp 2011 laser show

Pela primeira vez na vida, Mitch se sentiu à vontade para fazer parte de um grupo que compartilhava dos seus mesmos ideais e que queria aprender e trocar informações sobre tecnologia e afins. E foi dessa experiência, resultante de uma caravana de entusiastas de tecnologia dos EUA que visitaram o Chaos Communication Camp e voltaram muito inspirados, que saíram os primeiros hackerspaces norte-americanos, como o Noisebridge, em San Francisco, o NYC Resistor, em Nova York, o Hacktory, na Filadélfia, e o HacDC, em Washington, DC. Durante os anos seguintes, estes serviram de inspiração para o surgimento de centenas de outros espaços similares, não só nos EUA, mas também em iniciativas como o Garoa Hacker Clube, no Brasil. Outro incentivo que fortaleceu esses espaços foi ter feito parte da rede hackerspaces.org – criada por Astera, uma integrante do hackerspace de Viena, na Áustria, o METALAB – um excelente repositório de informações do que dá e do que não dá certo em hackerspaces.

Enquanto esses laboratórios comunitários estavam florescendo nos EUA, na Europa a cultura hacker já era forte desde a década de 80, com o pioneiro Chaos Computer Club. Ao contrário de muitos hackerspaces que apenas possuem o propósito de prover uma infraestrutura para que amantes da tecnologia desenvolvam os seus projetos de segurança, hardware, eletrônica, software e robótica, o Chaos Computer Club tem como objetivos principais a liberdade de acesso à informação, a liberdade de expressão, maior transparência no governo e acesso livre e universal à Internet. O CCC é mais conhecido por suas demonstrações públicas de vulnerabilidades de segurança.

Em março de 2008, o CCC coletou e publicou as impressões digitais do ministro do interior alemão Wolfgang Schäuble. A revista do clube “Die Datenschleuder” também incluía as impressões digitais em um filme que os leitores podiam usar para enganar leitores eletrônicos de impressões digitais. Isso foi feito em protesto ao uso de dados biométricos em dispositivos de identificação na Alemanha, como os passaportes eletrônicos.

Um aspecto fundamental da cultura hacker e que permeia esses hackerspaces é a cultura de permissão, isto é, você não tem que pedir permissão para fazer as coisas, o mote é “faça primeiro e pergunte depois”. E é nesse ponto que surge a inovação dentro da cultura hacker: você faz algo porque você acha legal e considera um desafio, e a partir dessa ação resultam projetos interessantes.

Por serem anarquistas por vocação, os fundadores do Noisebridge buscam ter o mínimo de regras possível. Sendo assim, o clube tem uma única conduta: “Be excellent to each other!”. Todas as decisões são feitas por consenso nas reuniões semanais, de modo a se evitar o que é conhecido como “a tirania da democracia”, em que em um grupo de 100 pessoas, 51 votam por algo que acaba desagradando as outras 49. Por meio da adoção do consenso, ninguém fica infeliz. Entretanto, a prática da decisão por consenso acaba sendo bastante conservadora, fazendo com que as coisas evoluam mais lentamente. Como forma de contrabalancear isso, é utilizado o conceito de doocracy (façocracia), no qual uma pessoa pode tomar a iniciativa de fazer algo por conta própria sem precisar alcançar consenso formal, desde que se tenha em mente a única regra de convívio: “Be excelent to each other!”.

Hackerspaces podem ser vistos como uma ressignificação de espaços iniciais como o Tech Model Railroad Club (TMRC) do MIT, nas décadas de 50 e 60. O clube de ferromodelismo era composto de diversos grupos, alguns interessados em construir réplicas de trens históricos ou com algum tipo de valor sentimental, outros interessados em construir maquetes das paisagens onde andavam os ferromodelos, e outros que formavam o grupo conhecido como “Signals and Power Subcommittee”, que criava os circuitos eletrônicos que controlavam a operação dos trens. Foi entre os integrantes deste último grupo que se popularizaram diversos termos, entre eles, “hack”.

Como exemplo do que pode ser considerado a essência do hacking (o entendimento tão profundo sobre o funcionamento de um sistema a ponto de conseguir utilizá-lo de uma maneira para a qual ele não foi originalmente projetado), conta-se a seguinte estória:

Certa vez, os hackers do TMRC tinham em mãos um conjunto de trilhos muito grande que ocupava toda uma sala, e as centrais de comando de ferromodelo que eles possuíam na época não davam conta do tamanho da malha que eles tinham. Para resolver o problema, um dos membros do grupo achou uma central telefônica velha jogada no lixo e percebeu que essa central telefônica analógica, que apenas ligava e desligava circuitos, era exatamente o que era preciso para se comandar as máquinas de ferromodelo. Eles usaram essa central telefônica que foi projetada para funcionar como central telefônica, mas a adaptaram para comandar uma malha de ferromodelo que era do tamanho de uma sala, o que era um feito de incrível engenhosidade. Um verdadeiro “hack”, na gíria utilizada pelo grupo naquela época.

Assim, podemos dizer que hackerspaces podem ser vistos como um retorno a esse espírito hacker de espaços iniciais como o TMRC e, mais tarde, o Homebrew Computer Club, na década de 70 no Vale do Silício. Muito do que é feito hoje em hackerspaces é genuinamente análogo a esses clubes, com a diferença de que hoje a tecnologia é mais sofisticada e há com certeza muito mais sucata eletrônica aguardando para ser explorada.

“Este artigo é dedicado em memória ao Alberto Fabiano (Aleph Techberto), membro fundador do Garoa Hacker Clube, que ajudou a disseminar o conceito de hackerspaces no Brasil.”

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Artigo publicado originalmente na Revista iMasters