Um dos primeiros projetos de realidade virtual foi pensando ainda nos anos 70. Ivan Sutherland escreveu, em 1965, o artigo seminal The Ultimate Display, considerado um marco inicial dos estudos sobre realidade virtual. Sutherland não era apenas um teórico, mas um engenheiro visionário que, além de publicar seus textos, desenvolveu o projeto The Sword of Damocles, em 1968, que ficou conhecido como o primeiro protótipo de óculos de realidade virtual.
Desde então, o conceito de realidade virtual acabou se tornando objeto de pesquisa de diversas áreas, como comunicação, computação, engenharia e psicologia. Novas teorias foram construídas e técnicas foram aprimoradas. Ainda assim, durante todo esse tempo, a cada novo projeto de realidade virtual que surgia, percebia-se que a tecnologia ainda não estava pronta. O tempo de resposta entre a interação do usuário com o sistema era lento, e os óculos não tinham a resolução de vídeo adequada. A fluidez de interação ficava longe do nível adequado para uma experiência de imersão.
Em 2012, no entanto, essa história começou a ganhar uma nova direção. O projeto do Oculus Rift arrecadou mais de US$ 2 milhões na plataforma Kickstarter e demonstrou que as tecnologias estavam em níveis adequados para finalmente atender aos requisitos de realidade virtual. O ciclo de vida de qualquer tecnologia é assim: anos são dedicados em pesquisa e desenvolvimento para que se alcance um nível satisfatório de uso.
O projeto Oculus Rift também foi importante para mostrar às grandes empresas que aquela abordagem tecnológica prometida há décadas estava perto de se tornar realidade. Em pouco tempo, o Google criou uma divisão de realidade virtual, com produtos como Google Cardboard e Daydream, a HTC lançou o Vive, a Microsoft desenvolveu o Hololens, dispositivo para realidade aumentada, e o Facebook comprou a empresa proprietária do Oculus Rift.
Esse movimento das grandes empresas impulsiona ainda mais o desenvolvimento das tecnologias para realidade virtual. Para se ter uma ideia do mercado, um relatório da Goldman Sachs aponta que os investimentos em realidade virtual já atingiram US$ 3,5 bilhões em 2016. Cientistas, engenheiros, designers e programadores estão sendo alocados em grande quantidade para trabalharem especificamente nessa área. A geração de conhecimento e o processo de inovação sobre o tema só vêm crescendo.
A realidade virtual está se tornando um ramo estratégico nas empresas de tecnologia. Ela que era tida quase como um sinônimo de games até alguns anos atrás, começa a ganhar aplicações nas mais variadas esferas. Há diversos projetos nas áreas de educação, saúde, segurança e, claro, entretenimento. As possibilidades de interação que essa tecnologia nos traz são tão promissoras que especialistas já a chamam de a próxima grande plataforma computacional.
O computador nos permitiu trabalhar com volumes de dados que eram impensáveis pelo homem. A Internet reconfigurou as nossas percepções acerca das distâncias no globo. Os celulares nos transformaram em nômades digitais. A realidade virtual, por sua vez, tem potencial para expandir nossas capacidades mentais e trazer rupturas para o que entendemos como presença.
Diferentemente das outras tecnologias digitais, a realidade virtual consegue envolver os nossos sentidos de forma efetiva, o que cria um cenário inédito para a humanidade. Até então, nós interagimos com a tecnologia por meio de controles e telas, sabendo identificar os limites da tecnologia – pelo menos em seu quesito físico. Ao navegar pela Web, basta olhar para o lado, para além da tela do computador, para entender a fronteira entre a tecnologia e o mundo físico. A realidade virtual vem para mudar tudo isso.
A promessa de todo pesquisador nessa área sempre foi a de proporcionar uma experiência imersiva para o usuário. Essa abordagem permite que você, ainda que esteja fisicamente em um lugar, possa ter a sensação e a experiência de estar em outro ambiente, simulado pelo computador – o que chamamos de sentido de presença. Isso é possível porque a tecnologia utilizada envolve nossos sentidos – principalmente visão e audição – por meio de estímulos sensoriais que refletem esse mundo virtual – você enxerga e ouve tudo o que acontece nele, deixando de se preocupar com o que está ao seu redor no mundo físico. Você pode estar fisicamente sentando no sofá de sua sala enquanto curte um passeio pelas ruas de Mumbai usando óculos de realidade virtual.
As interações também passam a ser mais fluidas. A liberdade de movimentos e a resposta imediata nesse ambiente são quesitos importantes para uma experiência imersiva. Nesse nosso exemplo, virando a cabeça para o lado direito, você não deixará de olhar para a tela de um monitor ou uma televisão, como acontece normalmente. O fato de estar com óculos de realidade virtual fará com que o mundo ao qual você está conectado responda a esse movimento. Você, então, que está sensorialmente andando por Mumbai, poderá dar uma olhadinha na loja do Sr. Prandeep, à direita.
Essas características da realidade virtual abrem novas possibilidade de interação com a tecnologia. Estamos perto do fim paradigma das janelas que nos acompanha desde o princípio da computação. Não sabemos precisar o que vem a seguir, mas seguimos investigando de perto a ruptura que a realidade virtual, assim como a realidade aumentada, trará para humanidade. Nós, humanos, vivemos a realidade física como um espaço tridimensional. Ao passar a utilizar a tecnologia com essa mesma abordagem, teremos uma melhor experiência e um aumento de produtividade.
Um recente estudo da consultoria Accenture, na área de neurociência, nos dá evidências de que somos melhores para trabalhar com instruções tridimensionais do que com aquelas bidimensionais. Nesse projeto, os pesquisadores transformaram o manual de instruções de um Lego, aquele simples papel que acompanha a caixa do brinquedo, em um manual tridimensional para ser utilizado com óculos de realidade aumentada. O simples fato de uma pessoa poder mover e girar cada uma das peças que estavam nas instruções, em vez de olhar para um desenho bidimensional em um papel, aumentou consideravelmente a sua produtividade.
A interação social se reconfigura com a chegada da realidade virtual, principalmente por conta do sentido de presença que essa tecnologia nos permite alcançar. A Web já havia se encarregado de conectar pessoas geograficamente separadas por meio de dados, mensagens e vídeos. A realidade virtual chega para conectá-las por meio de seus sentidos. Não é por menos que o Facebook, a maior plataforma de rede social do mundo, aposta tanto nessa abordagem – assim como Google, Microsoft, e os demais gigantes da tecnologia.
A Web como um todo deve ser impactada nos próximos anos, e esse impacto deve acontecer de uma maneira disruptiva, com a Web se tornando a principal plataforma para os projetos de realidade virtual. A grande parte dos projetos de realidade virtual, de que se tem conhecimento hoje, é baseada em aplicação stand-alone em computadores pessoais. Há muita fricção nesse processo – as pessoas precisam fazer download e instalar uma aplicação para poder usá-la. Uma tendência é mover as tecnologias de realidade virtual para serem utilizadas pela Web. A proposta é acessar uma experiência imersiva com a mesma facilidade que acessamos um site.
Caminhando nessa direção, o W3C está trabalhando na especificação WebVR, que traz uma API de integração de dispositivos de realidade virtual – óculos, controles e sensores – com aplicações Web. Com a implementação dessa especificação, é possível que o navegador reconheça os dispositivos de RV conectados na máquina do usuário para exibir o conteúdo diretamente nos óculos. A API também permite utilizar outras funções dos dispositivos, como dados de entrada para uma aplicação Web – por exemplo, a posição e a orientação dos dispositivos e um clique de botão no controle. Em outras palavras, a especificação de WebVR deve permitir que o conteúdo imersivo de uma página Web seja exibido diretamente nos óculos de RV, e que os controles substituam mouse e teclado.
A especificação WebVR cria uma nova página em branco na história da Web, que deve despertar em nós perspectivas inéditas de como desenvolvemos aplicações web e projetamos interfaces e experiências do usuário, que desta vez atingem níveis sensoriais.
Atualmente, ao acessar a página Web de um e-commerce, você pode navegar pelos produtos e acessar suas fotos em uma tela plana, utilizando basicamente mouse e teclado como dispositivos de entrada. A WebVR está sendo construída para permitir que você tenha uma experiência muito mais imersiva; que, ao colocar os óculos de RV e acessar um e-commerce, por exemplo, você não navegue simplesmente por uma página plana repleta de informações e imagens de produtos, mas que tenha realmente a experiência de estar lá, interagindo com cada um dos produtos.
Esse exemplo pode até parecer a descrição de uma cena de uma obra de ficção, mas é uma inovação que está em curso. Extrapolar os limites das visualizações bidimensionais, passando a utilizar ambientes tridimensionais para interação e consumo de conteúdo, faz parte do conjunto de desafios que vêm sendo superados para permitir que a evolução da Web continue acontecendo, incorporando novas tecnologias e tornando possível navegar e vivenciar experiências imersivas. Essa é a visão de futuro que defendemos para a Web; é por isso que o W3C fomenta e contribui com a padronização de tecnologias de realidade virtual na Web.
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Artigo desenvolvido em parceria com Newton Calegari, que é pesquisador no Ceweb.br e líder de projetos no escritório do W3C Brasil. Bacharel em Ciência da Computação e Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD / PUC-SP). Trabalha e pesquisa sobre core web technologies. É editor da recomendação Data on the Web Best Practices do W3C, atua na área de padronização junto aos grupos de trabalho no W3C. Também trabalhou em projetos de coleta e transmissão de vídeo 360° no Japão.