Uma grande mudança aconteceu na Internet no final do ano passado sem que nada fosse dito pelos grandes veículos de imprensa. Trata-se da transição da IANA – Internet Assigned Numbers Authority.
A IANA é a entidade cuja principal atribuição é a administração dos servidores de DNS raiz: aqueles que traduzem tudo que você escreve na barra de endereço do seu navegador para os números IP necessários para que seu computador tenha, de fato, acesso ao conteúdo de uma página, por exemplo.
Nos anos 90, a Internet era eminentemente acadêmica e inúmeras vezes menor do que hoje. No final da década, quando a rede começou a crescer por meio de sua abertura comercial, foi preciso repensar a forma como suas estruturas se organizavam.
Historicamente, as funções da IANA eram executadas pelos grupos acadêmicos liderados por John Postel. Sua morte repentina tornou ainda mais necessária a constituição de um processo mais formal de governança, principalmente frente aos crescentes desafios que surgiam em razão do aumento da complexidade e da expansão vertiginosa do número de usuários da rede.
Como muitas das pesquisas que deram origem ao que é a Internet foram financiadas em grande parte pelo Departamento de Defesa e pela Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos (algo semelhante ao nosso CNPQ), o Departamento de Comércio Americano ficou encarregado de supervisionar as atribuições da IANA. Afinal, uma chancela governamental ajudava a oficializar a instituição recém-criada.
O resultado prático disso foi colocar nas mãos do governo americano o controle de um ponto nevrálgico da rede que, em última análise, poderia ser utilizado com finalidades políticas e militares, uma vez que é possível “bloquear” a Internet de todo um país, apenas impedindo-se o acesso aos servidores DNS raiz.
Apesar de nunca ter exercido tal poder, com o passar dos anos, cresceu o incômodo de diversos países e setores da sociedade que, por sua vez, pressionavam o governo norte-americano por mudanças que representassem melhor a natureza cada vez mais global e multissetorial da rede. Por razões contratuais, o Departamento de Comércio dos EUA poderia ter exercido uma cláusula que forçava a renovação de suas relações com a IANA, mantendo as coisas como elas sempre foram.
Não obstante às pressões internas sofridas por parte de congressistas republicanos, como o senador Ted Cruz, o governo Obama optou pela não renovação do contrato e um processo de transição, que vinha sendo preparado anteriormente, passou o controle das funções da IANA para uma instituição subsidiária à ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), intitulada Public Technical Identifiers (PTI) e com sede na Califórnia.
Desta forma, o governo americano parece ter conseguido encontrar um meio termo entre as pressões por um processo de governança mais democrático, internacional e multissetorial (nos moldes de como a ICANN já se organiza hoje) ao mesmo tempo que mantém um certo controle ao submeter a PTI às leis e regras do Estado da Califórnia.
De qualquer maneira, trata-se de uma inflexão histórica importante na breve trajetória dos processos de governança da Internet. Os frutos dessa mudança só serão conhecidos daqui alguns anos. E já que se trata da entidade responsável por atribuir os números, o medo de alguns é que tenhamos trocado 6 por meia dúzia.
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Texto publicado originalmente na coluna “Post do Kemel” na revista Locaweb #67