Tecnologia

11 abr, 2017

Mao3D – O programa colaborativo que reúne inovação, tecnologia e inclusão

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Aproximadamente 25% da população brasileira é formada por pessoas com deficiência. Essa prevalência é muito alta, se comparada ao resto do mundo, e varia de acordo com a região do nosso País. As deficiências atingem todos os grupos de idade e podem ser do tipo visual, auditiva, motora, intelectual ou ainda uma combinação destas. Algumas pessoas já nascem com algum tipo de deficiência, outras são surpreendidas ao longo da vida, seja por causa de uma doença, devido a um acidente de trabalho ou de trânsito ou ainda pelo processo natural de envelhecimento.

Segundo a constituição brasileira, as pessoas com deficiência devem ter os mesmos direitos que as pessoas sem deficiência. No entanto, elas nem sempre conseguem usufruir dos seus direitos devido às desvantagens impostas por barreiras físicas, legais e de atitudes da sociedade. Por exemplo, apesar do ensino fundamental ser obrigatório no Brasil para crianças a partir de seis anos de idade, cerca de 10% das pessoas com deficiência ainda não possuem acesso ao ensino e constituem uma boa parte dos analfabetos. A falta de acesso à educação formal das pessoas com deficiência influi diretamente no fato de que apenas cerca de 50% delas conseguem entrar no mercado de trabalho e, assim, viver com mais independência e dignidade.

Tecnologia Assistiva é todo dispositivo, recurso tecnológico ou serviço que objetiva proporcionar às pessoas com deficiência mais autonomia, independência e inclusão social. Isso se dá por meio da ampliação de comunicação, mobilidade, controle de ambiente, habilidades de aprendizado, lazer e trabalho. Devido à sua natureza interdisciplinar, a Tecnologia Assistiva requer a integração de várias disciplinas de diferentes áreas de conhecimento, como engenharia, medicina, terapia ocupacional, design e outras. O Brasil possui um Catálogo Nacional de Produtos de Tecnologia Assistiva, entretanto, segundo os próprios usuários e profissionais da área, grande parte dos produtos disponíveis no mercado nacional e pelo Sistema Único de Saúde (SUS) possui baixa funcionalidade e custo muito elevado.

Desenvolver um produto de Tecnologia Assistiva com baixo custo, boa funcionalidade e que seja acessível requer um processo inovativo. Na maioria das vezes, esse tipo de produto precisa ser personalizado para que possa ser compatível com a necessidade do usuário, e essa personalização eleva o custo final e o tempo de produção. Por isso, novas pesquisas estão sendo desenvolvidas na busca de soluções para esses problemas.

Movimento Open Design e impressão 3D

O termo open design se refere à união do design ao conceito de código aberto  baseado na distribuição livre de produtos. O movimento open design promove a criação de projetos colaborativos, com auxílio de novas tecnologias. As plataformas Thingiverse e Instructables são canais onde pessoas de diferentes formações trabalham juntas criando ou modificando projetos para uso pessoal ou de um grupo, deixando-os disponíveis para que outros possam ter acesso a eles. Projetos de design aberto permitem o desenvolvimento de produtos físicos, softwares ou sistemas para solucionar um problema específico por meio da disseminação pública de informação. Hoje, existem centenas de projetos de design aberto graças ao uso de software e hardware também abertos. Atualmente, qualquer pessoa com acesso à Internet pode usar softwares livres e desenvolver uma ideia na forma de um produto com auxílio de tutoriais explicativos.

A maioria dos projetos de design aberto é desenvolvida com a colaboração de pessoas de diferentes lugares do mundo e, em muitos casos, sem visar ao lucro. Existem três tendências:

  1. Pessoas que dedicam tempo livre e usam suas habilidades para promoverem o bem comum em áreas como Tecnologia Assistiva (onde falta investimento ou não existe interesse comercial em países em desenvolvimento) ou ainda para o desenvolvimento de tecnologias mais baratas e acessíveis que podem ser usadas na educação;
  2. Pessoas que trabalham no desenvolvimento de tecnologias mais avançadas que seriam impossíveis de serem desenvolvidas com recursos de uma única empresa ou país por conta do custo de diversas expertises;
  3. Pessoas que se juntam para usar dispositivos abertos de tecnologia para desenvolver soluções customizadas locais, como impressoras 3D do tipo RepRap, que podem ser utilizadas na produção de estruturas e componentes funcionais para projetos de design aberto, bem como peças para a autorreplicação.

A impressão 3D é um recurso tecnológico que permite a produção de objetos reais com diversos tipo de materiais, como plástico e metal, a partir de um modelo digital ou desenho tridimensional feito no computador. Na última década, a tecnologia se tornou popular devido à disponibilidade de modelos abertos de impressoras 3D de baixo custo e softwares livres de modelagem 3D. A principal vantagem é a praticidade da produção, que não exige escala industrial, além da possibilidade de personalização do produto final.

O potencial do uso dessa tecnologia em países como o Brasil é enorme, sendo uma alternativa na busca por soluções de problemas atuais na área de saúde, como no desenvolvimento de dispositivos para auxiliar a inclusão social de pessoas com deficiência. No Brasil,  já existem impressoras 3D nacionais com custo variando entre R$ 2 mil e R$ 30 mil que utilizam polímeros que custam cerca de R$ 150,00/kg. Entretanto, a aplicação dessa tecnologia para a produção de dispositivos que realmente atendam às necessidades das pessoas com deficiência ainda está nos estágios iniciais.

ONGs que produzem próteses de mão

A primeira prótese de mão feita por impressão 3D foi criada na África do Sul, em 2012. Esse foi um processo colaborativo entre Richard van As, um carpinteiro que perdeu parte da mão em um acidente de trabalho, e um designer americano. Richard não se adaptou à prótese criada, mas testou o modelo em uma criança que nasceu com malformação da mão. A prótese permitiu ao garoto manipular pequenos objetos e jogar bola. O funcionamento dessa prótese é simples, a maioria das peças é de plástico e o movimento dos dedos é acionado por fios e elásticos a partir do movimento da articulação do punho.

Em 2013, foi criada a ONG Robohand, que passou a produzir próteses de plástico na África do Sul e disponibilizar pela Internet os arquivos para impressão 3D e instruções de montagem. Desse modo, qualquer pessoa com acesso a uma impressora 3D poderia produzir uma prótese. No mesmo ano, a ONG Robohand recebeu o prêmio Rockefeller Innovators Award e teve esse primeiro modelo de prótese exibido no Museu de Ciência de Londres, como um exemplo de inovação dos últimos 100 anos. Esse foi o primeiro caso relatado de uma colaboração internacional usando impressão 3D para inovar a forma de se produzir próteses de membro superior de modo mais rápido e com menor custo.

A Robohand deu origem à ONG americana e-Nable, fundada pelo Prof. Dr. Jon Schull, do Instituto de Tecnologia de Rochester. A e-Nable criou mapas online usando o Google+ para conectar:

  1. Quem precisa de uma prótese;
  2. Quem tem uma impressora 3D e quer imprimir próteses;
  3. Quem tem conhecimento de modelagem 3D (estudantes, designers, engenheiros etc.) e pode fazer melhorias nos modelos existentes.

Desse sistema colaborativo surgiram novos modelos de próteses de mão, mais bonitos, leves e funcionais, sem patente e de domínio público. As próteses podem ser produzidas em várias cores e formas, inclusive com heróis de quadrinhos sugerindo superpoderes e melhorando a autoeestima da crianças, ajudando na realização de tarefas diárias. Veja o vídeo:

Por meio dessa duas ONGs – Robohand e e-Nable -, mais de 5 mil próteses de braço e de mão já foram destribuidas em diversas partes do mundo. No Brasil, a disseminação desse projeto ocorre de forma mais lenta, pois ainda são poucas as pessoas que possuem acesso e sabem manipular uma impressora 3D. Segundo a legislação brasileira, uma prótese é considerada um dispositivo médico que não pode ser doado, a menos que seja prescrito e tenha o seu uso acompanhado por um profissional de saúde. Recentemente, a ANVISA divulgou a informação de que esse tipo de prótese feita por impressão 3D não precisaria de registro por ter uso externo e não representar risco ao usuário.

O programa social e colaborativo Mao3D da Unifesp

O Mao3D é um Programa de Pesquisa e Extensão do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP de São José dos Campos, SP). O Mao3D objetiva protetizar e reabilitar crianças e adultos com malformação ou amputação de membro superior com uso de próteses produzidas por impressão 3D. O programa foi criado em 2015 por mim, que sou repsonsavel pela área de biomecânica do curso de Engenharia Biomédica da UNIFESP. A iniciativa é fruto de um convênio da Unifesp com o Centro de Reabilitação Lucy Montoro de São José dos Campos.

A execução do programa é feita por alunos dos cursos de Bacharelado de Ciência e Tecnologia e Engenharia Biomédica que trabalham como voluntários e bolsistas da Unifesp junto com outros profissionais voluntários, cada um dentro de suas especialidades (medicina, fisioterapia, terapia ocupacional e psicologia). Por ser um programa social, as próteses do Mao3D são doadas sem nenhum custo ao usuário, e o programa se mantém graças ao apoio de empresas e pessoas físicas que colaboram.

O Brasil não tem registro de quantas pessoas precisam de prótese de membro  superior. Nesses casos, por lei, o SUS deveria fornecer para cada um que precisa uma prótese e um programa de reabilitação, porém o atendimento atual não contempla as crianças. Dentre os motivos que impedem o fornecimento adequado de prótese de membro superior, o principal é a alta taxa de  abandono de uso, pois as próteses nacionais são muito pesadas e pouco funcionais, enquanto que os modelos importados, que possuem maior funcionalidade, chegam a custar R$ 300 mil. Em alguns casos, o SUS fornece próteses importadas, mas a espera pode chegar a anos.

A falta de membro superior ocorre em casos de malformação congênita, doenças adquiridas e acidentes de trabalho (mais de 50% dos casos de acidentes nas indústrias). Apesar de estudos indicarem que a falta do membro superior na primeira infância pode prejudicar o desenvolvimento cognitivo infantil e que o processo de reabilitação é melhor quando se inicia na primeira infância, a maioria das crianças brasileiras que precisa não recebe prótese de membro superior pelo SUS.

A adaptação do crescimento físico e desenvolvimento psicológico de uma criança que usa uma prótese é um verdadeiro desafio. A taxa de rejeição ao uso de prótese nesses casos é de aproximadamente 71%. Por isso, a maioria das crianças com amputação congênita de mão não recebe prótese até que chegue ao fim da fase de crescimento. Com a protetização adequada e um programa de reabilitação, seria possível oferecer uma qualidade de vida melhor e com mais independência para uma criança amputada.

O Programa Mao3D se baseia em modelos desenvolvidos pela ONG e-Nable que usam a inovação tecnológica da impressão 3D para desenvolver próteses de mão mais acessíveis e que ofereçam uma boa funcionalidade. O Mao3D está de acordo com a missão da UNIFESP de promover o avanço do conhecimento através de ações de ensino, pesquisa e extensão, tendo como fundamentos básicos a interdisciplinaridade, a excelência e a inclusão social.

O Mao3D é formado por 4 linhas:

Divulgação da técnica de impressão 3D na produção de prótese de mão

A tecnologia de impressão 3D é um tema relativamente novo no Brasil. Por isso, dois canais de comunicação foram criados para informar ao público de modo geral sobre o uso de impressão 3D para a produção de  próteses de membro superior: a página no Facebook e o blog. O Mao3D já  realizou diversas ações como palestras (em escolas técnicas, universidades, empresas e congressos) e participação em exposições.

Essas ações objetivam também identificar as pessoas que precisam de próteses e aqueles que desejam eventualmente ajudar como voluntários no programa. Em alguns casos, é feita uma divulgação direcionada para os profissionais de saúde pela necessidade de atualização destes quanto ao uso da impressão 3D na área de Tecnologia Assistiva. A imprensa de modo geral tem feito matérias para rádio, TV e mídias de Internet (veja neste link).

Produção, distribuição de prótese de mão e reabilitação

Este é o projeto mais importante do Programa Mao3D. O objetivo é criar e produzir  próteses de membro superior por impressão 3D e oferecer também um programa de reabilitação para os usuários.  Os interessados em se beneficiar com o programa passam por duas triagens. A primeira com a equipe técnica de alunos da Engenharia Biomédica da UNIFESP, que verifica se o tipo de malformação ou amputação pode ser protetizado com os modelos existentes, e a segunda triagem é realizada pela equipe do Centro de Reabilitação Lucy Montoro, que possui alguns pré-requisitos, como limite mínimo de idade, restrição de atendimento somente para pessoas da Região do Vale do Paraíba e outros. Após as duas triagens, é realizada a medição das dimensões do coto do usuário que vai receber a prótese, e o modelo mais adequado é definido.

Na próxima fase, é feita a modelagem 3D baseada em modelos da e-Nable, e algumas  modificações como a implementação de características lúdicas de acordo com o gosto da criança são realizadas. Até agora, cinco próteses já foram feitas para crianças, e estas foram personalizadas com personagens infantis como Homem Aranha, Capitão América e Batman. Definido o modelo, as partes que compõem a prótese são impressas em 3D com filamento plástico colorido, e a prótese é montada com alguns acessórios extras. Com a prótese pronta, são feitas várias provas no voluntário para se identificarem as necessidades de ajuste e o tipo de revestimento interno que deve ser usado. Um podólogo tem ajudado nesse processo, revestindo a parte interna da prótese com materiais usados na fabricação de palmilhas internas de sapatos.

Em seguida, é feita a avaliação sobre a funcionalidade da prótese ao ser acionada pelo usuário e sobre o conforto do uso. Somente, então, o voluntário e a prótese estão prontos para iniciar a fase de reabilitação, processo fundamental em que o usuário vai aprender a utilizar a prótese para a realização de tarefas do dia a dia, como manipular objetos, se alimentar, escrever etc. A fase de reabilitação é realizada por um Terapeuta Ocupacional, acompanhado por um Psicólogo e também pela equipe técnica da UNIFESP. Geralmente, durante a reabilitação se identifica a necessidade de se fazer mais modificações no modelo da prótese para a realização de tarefas específicas. Somente depois que o usuário mostrar autonomia no uso prótese que ele a recebe definitivamente.

Nem todos os casos são concluídos com sucesso. Em alguns deles, o processo é interrompido em uma das fases citadas. Os principais motivos são: impossibilidade de acionar a prótese, inadequação do modelo da prótese ao coto, falta de maturidade ou interesse do usuário, frustração do usuário em relação às expectativas iniciais etc. Geralmente, crianças que nasceram com uma malformação de membro superior aprendem a desenvolver as atividades do dia a dia com o seu membro como ele é.

O uso da prótese de mão 3D requer uma nova aprendizagem no modo de se manipular os objetos. Existe ainda a desvantagem de que com esse tipo de prótese o usuário não tem a sensação do tato ao tocar nos objetos. De qualquer forma, o uso da impressão 3D abre as portas para um mundo de possibilidades a serem investigadas no desenvolvimento de prótese de mão mais funcionais.

Capacitação para a produção de prótese de mão

O objetivo deste projeto é ensinar o uso de tecnologia de impressão 3D para a  produção de próteses de mão. Uma série de workshops têm sido realizados para públicos-alvo bem definidos, como profissionais da área de exatas e profissionais da área de saúde. Esse é um projeto de grande importância, pois permite que a produção de próteses por impressão 3D ocorra não somente na região do Vale do Paraíba, de modo que o programa possa ser replicado posteriormente em outras regiões do Brasil.

Gestão e captação de recursos humanos e financeiros

O Programa Mao3D é fruto de uma iniciativa dos alunos da Unifesp que decidiram buscar uma solução para um problema social. Inicialmente, o Mao3D não possuía recursos financeiros próprios para manter suas atividades. Dada a dimensão social do programa que busca solucionar uma questão que não é atendida pelo SUS, como próteses de mão para crianças, houve a necessidade de se buscar sustentabilidade do mesmo. Assim, foi definida uma estratégia de captação de recursos. Foi realizada uma campanha de financiamento coletivo e aproximadamente R$ 11 mil foram arrecadados para a compra de material, garantindo assim a produção inicial de 25 próteses. Depois dessa campanha, inúmeras empresas e pessoas físicas têm procurado o Mao3D oferecendo ajuda na forma de impressoras 3D, filamentos para impressão e acessórios para montagem das próteses, além de prestação de serviços diversos. Pode-se afirmar agora que o Mao3D é um programa colaborativo construído e mantido pela dedicação de muitas pessoas.

Com todo desenvolvimento cientifico e tecnológico do mundo atual, dispositivos de Tecnologia Assistiva mais confortáveis, anatômicos, funcionais e esteticamente agradáveis já deveriam ser uma realidade. De modo geral, a impressão 3D pode alavancar a Tecnologia Assistiva do Brasil por ser um recurso economicamente viável atualmente. Baseado no Modelo de Programa Social Mao3D, muitos outros programas podem ser desenvolvidos. O Mao3D tem sido usado como referência em vários lugares do Brasil e tem servido como motivação para que outros grupos iniciem projetos similares de Tecnologia Assistiva.