Desenvolvimento

25 mai, 2017

Liga dos Programadores – Religião e Esportes

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O DHH fez uma apresentação muito interessante na abertura da RailsConf’17, explicando quão mentirosa é a tendência atual de ilusão dos desenvolvedores de que eles estão fazendo escolhas “racionais” e “baseadas em fatos”, quando na verdade eles estão, na maioria dos casos, se ligando aos “valores” ocultos de alguma comunidade. Algo mais semelhante à uma “religião” (escolhas baseadas na fé) do que à ciência.

Minha linguagem é “mais rápida”. Meu framework é “mais elegante”. Minha ferramenta é “mais produtiva”. Minha comunidade é “mais amigável”. Todas razões mentirosas para escolher algo, porque essas razões não importam realmente.

Embora o DHH tenha feito um bom trabalho descrevendo a realidade das escolhas dos desenvolvedores, ele não chegou a explicar por que todos nós fazemos dessa maneira. Incluindo ele mesmo. Incluindo eu.

A teoria da religião do framework explica alguns dos comportamentos, eu iria mais longe.

A maioria dos desenvolvedores são como fãs de esportes (ou fanáticos, como é a raiz da palavra fã).

Veja alguns itens do artigo “Why Sports Fans are Sports Fans”:

  • Existe muito drama;
  • É divertido assistir à grandeza;
  • Toca nosso lado obscuro que gostaria de sentar-se no Coliseu na Roma antiga e assistir a pessoas lutando até a morte;
  • É esteticamente agradável;
  • O mundo dos esportes inclui muitas fofocas;
  • Os esportes propiciam um escape da vida;
  • É uma ferramenta perfeita para suas tendências paralisantes de procrastinação;
  • Às vezes eu acho que podemos até utilizar os esportes para nos conectarmos com algo imortal;
  • Em uma época em que os triunfos heroicos não fazem parte da vida da maioria das pessoas, os esportes nos permitem capturar um pouco do sentimento de glória.

Os nichos dos desenvolvedores se parecem com equipes de esportes em uma competição. Deve haver “vencedores” e “perdedores”. E as pessoas comemoram a cada pequena vitória (como referências sintéticas inúteis, ou índices pseudoestatísticos sem sentido como o TIOBE).

Os fãs das equipes perdedoras sentem-se como se eles precisam ter uma lealdade ainda maior para receber o prêmio máximo.

Os níveis de testosterona aumentam enquanto há discussões sem sentido sobre Hackenews. As discussões ficam realmente profundas, cada um dando “evidências” mentirosas para “provar” seu ponto. E cada argumento tem um contra-argumento fácil, e as discussões continuam indefinidamente. E cada pessoa que esteja escrevendo nunca vai concordar com o contrário. E ninguém nunca vai mudar de lado baseado nos argumentos de uma dessas discussões. Sim, mesmo assim eles ainda perdem muito tempo escrevendo. Loucura.

As pessoas – especialmente os jovens – gostam de ter a sensação de pertencer, uma sensação de “desindividualização”, responsabilidades divididas, que foi uma das razões pelas quais escrevi alguns anos atrás sobre a tendência da falta de noção atual nas linguagens funcionais.

Como o Mike Perry descreve em seu artigo, os fãs mais apaixonados tendem a se identificar como uma parte integral do time para o qual torcem, com alguns deles – claramente – sentindo-se menos responsáveis por seu comportamento individual. Quando a desinibição é combinada com a “desindividualização” – uma perda da autoconsciência e uma sensação de responsabilidade compartilhada –, os fãs simplesmente não se importam mais com o que os outros podem achar ou como podem se sentir. A “desindividualização” fragiliza o controle sem o qual os fãs são mais facilmente influenciados pelo que estiver ao seu redor, aí é que os fãs começam a agir de maneira realmente estranha, tanto de uma maneira agradável quanto menos agradável.

Os grupos de fãs podem ir para cima, insultar, ameaçar ou até causar tumultos. Os grupos propiciam uma sensação de anonimato. Fazer parte de um grupo remove a prestação de contas individual e compartilha a responsabilidade. Infelizmente, esse comportamento aparece online da mesma maneira que aparece nos estádios.

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As conferencias de tecnologia são como os jogos de fim de semana. As pessoas gostam de se sentir legitimadas estando em meio a grupos que pensam da mesma maneira.

Assim como nos esportes, os desenvolvedores sentem que seus “times” (tecnologias, companhias) são extensões deles próprios. Pior, eles sentem que isso descreve suas personalidades. Essa é a razão pela qual os desenvolvedores reagem de maneira tão apaixonada a argumentos contrários: parece agressão contra eles próprios.

“Quando analisamos as motivações para seguir uma equipe de esportes, a afiliação ao grupo é um dos principais”, diz Wann. Identificar-se fortemente com uma equipe local de evidência, onde outros fãs estão no ambiente, é beneficial para o bem-estar social e psicológico.

“Toda a ideia por trás dessa identificação é que ela realmente faz parte de como nos vemos, e isso não muda facilmente”, diz Robert J. Fisher, professor de marketing na Universidade do Oeste de Ontário, cuja pesquisa enfatiza os efeitos das expectativas sociais nas tomadas de decisões gerenciais e dos consumidores. “Se você se vê como membro de uma família, esse papel não muda. Esses tipos de conexão são muito duradouros e muito fortes”.

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Tudo é um grande show, você é o público. Somente não se engane pensando que você tem sido “científico” em suas escolhas.

Todos somos vítimas de uma pesada tendência cognitiva, que nos cega da verdade:

Este é um texto de Sam McNerney (@WhyWeReason) explicando sobre tendências cognitivas. Esse é o fenômeno em que todos nós procuramos o que confirma nossas intuições e ignoramos o que as contradiz, que os psicólogos chamam de tendência de confirmação. A tendência de confirmação ajuda a explicar por que alguns fãs vão vaiar todas as referências que sejam contrárias às suas equipes e os fãs do futebol inglês irão – ainda – discutir com os alemães sobre se a bola passou ou não da linha em 1966 (!). Os fãs automaticamente veem o mundo da maneira que eles querem, não como ele é.

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Mais interessantemente, da mesma maneira que os fãs das equipes esportivas que perdem, as pessoas sempre encontram maneiras de superar. E a superstição é uma delas.

As superstições são uma parte integral dos esportes, e elas também podem ser uma maneira para que os fãs lidem com as performances de suas equipes.

Em uma pesquisa em desenvolvimento, Wann e seus companheiros estão explorando o papel da superstição dos fãs. Mais da metade dos 1.000 participantes podem prontamente definir uma superstição ou ritual no qual eles acreditam. Além disso, alguns estão realmente convencidos de que sua participação nos rituais supersticiosos influencia os resultados, diz Wann. Quanto mais se identificam com uma equipe, mais propensos eles estão a acreditar que as superstições importam.

“É uma verdadeira luta que os fãs de esportes experimentam”, diz Wann. “Eles se importam tanto com o resultado de um evento sobre o qual eles não têm controle nenhum. Como conseguir o controle? Podemos criar superstições”.

Psicologia Social – leia mais

O que eu sempre tenho a dizer sobre a falta de noção é:

  • Se ser o “mais rápido” fosse uma preocupação real, todos estaríamos programando em C, o mais limpo possível.
  • Se ser o “mais seguro” fosse uma preocupação real, nós nunca utilizaríamos bibliotecas criadas por pessoas desconhecidas, sem certificado e sem treinamento. Iríamos criar tudo do zero, nós mesmos, sempre, e aguardar meses de baterias pesadas de testes antes de entregar para produção. Você sabe, como os militares costumavam fazer.
  • Se ser o “mais elegante” fosse uma preocupação real, não nos preocuparíamos com ser o mais rápido ou o mais seguro, já que vão em direções opostas.

O ofício de um engenheiro, ou qualquer outro profissional responsável, é estar apto a escolher entre diferentes compromissos e se equilibrar entre eles, nunca entregando lealdade cega a nenhum grupo ou maneira de pensar específica. Os amadores entregam sua lealdade a alguém. Os profissionais se mantêm responsáveis por suas escolhas, e se comprometem.

Escalabilidade, manutenção, confiabilidade, todas as –“abilidades” que adicionamos à lista é um compromisso. Você não pode ter seu bolo e comê-lo também. Você quer mais, você paga por mais. Porque cada terminologia é uma combinação de compromissos, você não pode ter um vencedor ou perdedor únicos. Todos vão ganhar em alguns aspectos e perder em outros.

Como Neo descobre na Matrix: o problema é a escolha. O problema sempre é a respeito da escola. As pessoas não gostam de escolher, porque isso as torna responsáveis. É muito mais fácil fazer alguém tomar a decisão e somente seguir, criando a ilusão de que você tomou uma decisão “racional” porque “o grupo” confirma.

Afinal, “ninguém foi demitido por escolher a IBM”.

A realidade que você vai acabar descobrindo é que você não vai ter que tomar “a” decisão.

A separação entre “mocinhos” e “bandidos” somente existe em contos de fadas e histórias para crianças dormirem. O mundo dos adultos é definido por tons de cinza.

No fim do dia, DHH está certo. Não importam as especificações técnicas do PS4 vs Xbox One vs Nintendo Switch. Não importa a quantidade de teraflops. Não importa a largura de banda. Não importa ser 4k nativo ou não. Se eu gosto de Zelda, vou jogar no Switch. Se eu gosto de Forza, vou jogar em um Xbox. Se gosto de Uncharted, vou jogar no PS4. E se eu tiver condições, vou ter todos. Se eu não puder, vou escolher o que eu quero jogar agora, sabendo que posso trocar de plataforma sem ter que me justificar através de especificações técnicas.

Ou eu me inscrevo na Rails Doctrine ou no The Zen of Python Não importa. Vou criar o Zelda com eles? Caso contrário, qualquer “evidência” que você tenha para contra argumentar minha escolha é uma completa mentira. Nem tente.

Mas, é claro, você deveria utilizar o Ruby se for um desenvolvedor racional ?.

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Fábio Akita faz parte do time de colunistas internacionais do iMasters. A tradução do artigo é feita pela redação iMasters, com autorização do autor, e você pode acompanhar o artigo em inglês no link: http://www.akitaonrails.com/2017/05/14/programmers-guild-religion-and-sports.