Marketing Digital

22 jul, 2016

Persuasão no content marketing: por que ela nem sempre funciona?

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Mês passado, depois de ter dado por concluído um longo dia de trabalho, liguei a tevê do meu quarto no propósito de “fazer um som”. Creio que a necessidade de “fazer um som” seja relativamente comum àqueles que, como eu, moram sozinhos (e que a minha filha de quatro patas não me leia), mas, para quem não vive essa experiência, basta dizer que se trata daquele momento em que o silêncio perturba, e aí vale qualquer som pela casa ‒ música pelo celular, personagens das novelas da Globo se ofendendo, o cachorro do vizinho latindo (com perdão ao vizinho pelo duplo sentido), propaganda eleitoral…

Na noite a que me refiro, particularmente, eis que a propaganda em questão era do PSD (Partido Social Democrático), e começava da seguinte maneira:

Aqui em São Paulo a desigualdade cresce e os problemas se acumulam.
Enquanto alguns bairros têm acesso a tudo, a maioria da população tem dificuldade para marcar uma simples consulta médica, não consegue nem uma vaga para colocar o filho na creche.

Até então, eu estava parada no meu quarto, olhando enternecidamente para o aquecedor ‒ deveria ou não levá-lo para o banheiro, considerando que desligar o chuveiro seria, por si só, um desafio à parte? Na verdade, nem eu mesma sabia que, de algum modo, estava dando atenção à fala daquele político (que depois identifiquei como vereador Matarazzo), até que, ao final da palavra “creche”, alguma conexão (ou melhor, a ausência dela) suscitou em mim um certo “estranhamento”. O provável candidato a prefeito de São Paulo prosseguia:

Milhares de paulistanos, principalmente jovens, estão desempregados.
Falta saneamento básico, moradia decente, e a segurança preocupa todos. […]

Bem, não vou me deter em transcrever a sua fala na íntegra porque, na prática, interessa-me muito mais que nos concentremos na primeira parte já registrada.

Em busca da propaganda eleitoral na Internet, encontrei-a postada em 17 de junho na página do PSD no Facebook e, assistindo a ela, agora com mais atenção, pude elaborar com um pouco mais de critério o porquê daquele meu estranhamento inicial (se possível, antes de prosseguir com o artigo, releia-o agora, com mais tranquilidade. Que lhe parece?).

Vejamos: no site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, ao qual muitas vezes recorro para alguns esclarecimentos em atividades de revisão, encontramos o título “Os conectores mais utilizados no discurso político”, no qual estão especificados o que chamamos de “conectores ou articuladores discursivos”. E, embora o nome remeta a algo que nem todos identifiquem de pronto, o fato é que se trata daquelas expressões por meio das quais apresentamos o nosso raciocínio de maneira mais organizada, coesa, estabelecendo uma relação entre as ideias.

O que isso significa na prática?

Na prática, isso significa que, se introduzo uma questão por meio da expressão “por um lado…”, espera-se, naturalmente, que mais adiante eu retome essa questão mediante a expressão “por outro…”. Da mesma forma, estabelece-se uma relação quando se diz “não apenas…”, na qual se espera a adição de “como também” ou de “mas também”, e assim sucessivamente. Se, por exemplo, eu lhe pedisse para completar a sentença iniciada por “Enquanto uns têm tudo…”, o mais provável é que você respondesse que “…outros não têm nada”. E não haveria qualquer problema de lógica nessa construção, pois o paralelo entre “uns X outros” e “têm tudo X têm nada” seria perfeitamente inteligível e coerente, correto?

O mesmo não se pode dizer, porém, em relação ao discurso veiculado pela propaganda do PSD. Afinal, quando o enunciador da tal propaganda pronuncia “Enquanto alguns bairros têm acesso a tudo”, o simples uso do “enquanto” estabelece uma relação de lógica que não se confirma ‒ no caso, “outros [bairros] não têm acesso a nada”.

Numa “manobra linguística” que somente o redator desse discurso político saberia justificar (saberia?), note-se que, em vez de dar prosseguimento a um paralelo entre os bairros que têm acesso a tudo X os bairros que não têm acesso a nada, o enunciado, de repente (e não mais do que de repente!), toma o referente “bairros” por “população” como se eles se equivalessem (“bairros” = “população”), como se essa correspondência fosse “natural”, “legítima”.

Mais especificamente: em primeiro lugar, quando o candidato diz “Enquanto alguns bairros têm acesso a tudo”, seria de se perguntar o que, para ele (e para o seu partido, evidentemente), significa “ter acesso a tudo”. Para mim, por exemplo, os “bairros que têm acesso a tudo” seriam uma alusão àqueles bairros onde o morador encontra todos os serviços de que precisa, sem a necessidade de percorrer longas distâncias para encontrar um supermercado, uma farmácia, um pronto-socorro, opções de lazer etc. Além disso, também seriam uma alusão àqueles bairros cujo acesso a outros lugares é facilitado (aqueles que neles residem têm fácil acesso a rodoviárias, aeroportos, centros comerciais etc.). Assim, no meu entendimento, “ter acesso a tudo” implica que esse seria, por assim dizer, um bairro com uma excelente infraestrutura.

Acontece que, se refletirmos melhor a respeito, a excelente infraestrutura de um bairro não garante, obrigatoriamente, a qualidade dos serviços públicos que ele disponibiliza aos seus moradores. Afinal, entre outros problemas, o bairro pode contar com renomados hospitais particulares, mas também com hospitais públicos cujo atendimento deixa a desejar; pode contar com ótimas escolas de ensino infantil, mas com pouquíssimas creches, já superlotadas. E aí está, mais precisamente, a relação de oposição evocada no discurso durante a propaganda eleitoral do PSD, mas que não se sustenta. Isso porque, em contestação aos “bairros que têm acesso a tudo”, o político apresenta “a maioria da população” que “tem dificuldade para marcar uma simples consulta médica, não consegue nem uma vaga para colocar o filho na creche”, instituindo uma comparação ‒ no mínimo ‒ “questionável”.

Na desconstrução do discurso, portanto, observamos a tentativa de se propor um problema a partir de uma base inconsistente, numa relação de antagonismo que não se sustenta:

[Lógica verdadeira:] Enquanto alguns… (x) …outros…
A quem se refere: bairros (x) a maioria da população
 O que eles têm: acesso a tudo

(infraestrutura geral?)

(x) dificuldade para marcar uma simples não consulta médica(qualidade dos serviços públicos)

Ao pretender tomar partido em nome da maioria da população, desfavorecida, o PSD se utiliza de proposições verdadeiras, mas distintas: com efeito, alguns bairros têm acesso a tudo, e também é verdade que sofremos com os desserviços públicos. No entanto, a articulação que o autor do discurso estabelece entre uma coisa e outra produz um sofisma ‒ na definição do Houaiss, um “argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da verdade, que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta, na realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente enganosa”.

Para validar a relação que, ao que parece, pretendia-se estabelecer, bastaria que se dissesse: “Enquanto alguns poucos têm fácil acesso a todo tipo de serviço, a maioria da população tem dificuldade para marcar uma simples consulta médica, não consegue nem uma vaga para colocar o filho na creche.”. Nesse caso:

Lógica verdadeira: Enquanto alguns… (x) …outros…
A quem se refere: alguns poucos(minoria da população) (x) a maioria da população
 O que eles têm: fácil acesso a todo tipo de serviço (x) dificuldade de acesso aos serviços que podem ser considerados mais elementares (atendimento médico, creche para os filhos, etc.) 

A diferença é evidente, não?

Bem, transportando-me para o seu lugar de leitor, suponho que eu objetaria: “Mas, Iara, a inconsistência no texto dessa propaganda não seria perceptível somente para você, que gosta de brincar de analista do discurso? Para as ‘pessoas normais’, isso não passaria despercebido?”.

Na verdade, não e não, já respondendo às duas perguntas. Isso porque, por mais que a esmagadora maioria das pessoas que conheço não se aventurasse a essa análise mais pormenorizada, é certo que a maior parte delas não se sensibilizaria ante a fala do candidato do partido. Muito provavelmente (e até por serem “normais” ‒ risos), elas não manifestariam o mesmo estranhamento que eu tive com a associação (forçada) entre “alguns bairros” e “a maioria da população”, mas o fato é que, sem que soubessem especificar o porquê, não se sentiriam convencidas.

Ressalte-se aqui: por mais que não estejamos falando de estudiosos do discurso, estamos nos referindo a usuários da língua. Não importa que não se conheçam as técnicas ou os rótulos científicos: existe um uso interiorizado em cada um de nós, uma “intuição linguística” a respeito daquilo que efetivamente condiz com a (nossa) própria lógica ou não. E é exatamente disso que muitos profissionais do Marketing de Conteúdo (bem como do Marketing e da Publicidade em geral), por exemplo, ainda não se deram conta, subestimando essa avaliação mais crítica por parte do seu público ou do seu público-alvo em potencial.

Mas, Iara, no mundo do Marketing e da Publicidade, o que vale não são aqueles tais elementos de persuasão?

Certamente; porém, não apenas. Quando, por exemplo, esses elementos de persuasão são aplicados a um raciocínio construído a partir de premissas falsas, ou construídos a partir de premissas verdadeiras que pretendem criar uma falsa verdade, os elementos não persuadem por si sós. É necessário que haja uma congruência entre todos esses aspectos.

Para ilustrar: ouvi falarem bastante a respeito de um profissional que ganhou bastante visibilidade no seu segmento de marketing de conteúdo. E, interessada em conhecer um pouco mais do seu trabalho (que respeito), acessei o seu site e, logo no topo, acabei me deparando com a seguinte inscrição:

Junte-se a mais de 150.000 leitores inteligentes e receba atualizações, artigos e dicas imperdíveis para ter sucesso com o seu blog (é grátis)!

Conforme é possível averiguar, somente nesse trecho já é possível destacar três elementos de persuasão: 1) há um significativo número de leitores; 2) não são quaisquer atualizações, artigos e dicas, mas, sim, atualizações, artigos e dicas “imperdíveis” para que eu tenha sucesso com o meu blogue; 3) tais atualizações, artigos e dicas são oferecidos gratuitamente.

Até aí, tudo muito bem, não fosse a (falsa) premissa sugerida por trás desses elementos: o profissional faz o convite para que eu me junte a “mais de 150.000 leitores inteligentes”; logo, se eu optar por não me juntar a esses leitores, que são inteligentes, é porque eu mesma não sou uma leitora inteligente (será?).

Ainda no site desse profissional, vi se abrir uma janela que me questionava: “Quer fazer o seu negócio decolar?”. Abaixo da pergunta, surgia uma pequena chamada a respeito de um e-book (que, como elemento de persuasão, promete impulsionar o meu negócio) e, pouco mais abaixo dessa chamada, duas opções de respostas: “Sim! Quero baixar agora o eBook grátis!” e “Não. Meu negócio já faz muito sucesso”.

… (Aquelas reticências para se refletir…)

Ora: apresentavam-se a mim duas respostas visivelmente direcionadas, sendo que, no caso da resposta negativa, trabalha-se com aquilo que, para o autor do site, seria o único argumento capaz de justificar a recusa quanto ao e-book: “Meu negócio já faz muito sucesso”.

Vejamos: se, por um lado, a premissa pode ser verdadeira (apesar de pouco provável, é possível que o visitante do site tenha um negócio que já faça muito sucesso), a conclusão que aí se propõe pretende criar não apenas uma ilusão de verdade, mas uma provocação que atenda ao interesse do dono do site. Afinal, se o negócio do visitante ainda não faz muito sucesso, a única opção na qual lhe restaria clicar seria a primeira: “Sim! Quero baixar agora o eBook grátis!”. Contudo, onde estaria a opção de não baixar o e-book simplesmente porque não há interesse?

Tanto na propaganda eleitoral do PSD exibida em junho quanto nos exemplos dados a respeito do site voltado ao marketing de conteúdo, o que se constata é que, no propósito de atender a determinados objetivos do enunciador (seja ele o candidato, o partido político ao qual o candidato está afiliado ou o autor do site que também vende cursos), aplicam-se elementos de persuasão em cima de raciocínios “fabricados” e que, se descontruídos, revelam não apenas a sua “fragilidade”, mas também os objetivos pelos quais foram “manobrados”.

Nesse contexto, talvez valesse a pena perguntar: em vez de persuadirmos por meio de lógicas que buscam criar uma falsa verdade e legitimar a nossa própria necessidade, não seria mais efetivo se privilegiássemos o interesse e os argumentos do próprio público-alvo, oferecendo-lhe contrapartidas que realmente satisfizessem as suas demandas?