Texto escrito em colaboração com Eduardo Oda*
História
Autonomia, interoperabilidade, federação, distribuição, re-descentralização. São termos técnicos de arquitetura de sistemas computacionais que, não por acaso, soam familiares a conceitos básicos da democracia.
Nas décadas que deram origem à Internet, três forças conspiraram para o sucesso de um sistema de comunicações sem precedente, pois, até então na história da humanidade, prevaleceu sempre a tentativa de concentrar o poder de comunicação em grupos menores. Seja na idade média pela restrição de acesso à alfabetização, na idade moderna através do direito autoral (já na sua origem concebido como forma de censura e reserva de mercado para os amigos dos monarcas), no século XX com a caça às rádios locais de trabalhadores na Alemanha pré-nazista, até a regulação draconiana de concessões de rádio e televisão em quase todo o globo para favorecer elites locais.
Como se não bastasse o bom senso, há uma vasta literatura – de Walter Benjamin a McLuhan e além – sobre como a concentração desses sistemas de comunicação moldaram nossas sociedades, a imagem que fazemos de nós mesmos, de outros povos e dos possíveis futuros que conseguimos imaginar e organizar.
Mas, durante a Guerra Fria e o período da ascensão dos computadores, a preocupação dos militares com a resistência da infraestrutura de informação a ataques, a de acadêmicos com experimentar localmente essa infraestrutura e a de jovens e ousados empreendedores investidos de uma forte ética libertária, desejosos de promover um ambiente competitivo, deram origem às fundações do que hoje chamamos de Internet.
Assim, a Internet, além de todo o ineditismo de seu potencial tecnológico, inaugurou também um período de relativa democracia nos meios de comunicação. Não apenas a comunicação e a programação diretamente entre indivíduos passou a ser viável, consequência do avanço técnico, mas o controle dos primeiros ambientes a promoverem e amplificarem essas interações tendiam à descentralização.
Com tecnologias como BBS, Usenet, e-mail, IRC, Web e até mesmo os comandos “finger” e “talk” do UNIX, qualquer um podia instalar seu servidor e havia certo grau de expectativa de interoperabilidade, seja do cliente, para escolha de servidores, ou dos próprios servidores entre si.
Ainda hoje, é possível um indivíduo ou um coletivo montar um servidor de e-mail e se comunicar da sua conta “eu@nossoservidor.com.br” com qualquer outro usuário de um grande provedor como Google, Yahoo! ou Microsoft.
Esses ambientes, é claro, continuam vivos, mas – à exceção do e-mail – a grande maioria dos novos usuários da rede não os utiliza. Hoje, os ambientes mais populares, como Facebook e Twitter, levam o nome de empresas, e não de protocolos ou padrões. E, numa camada mais profunda do que essa, um número cada vez menor de companhias detém o controle físico sobre a infraestrutura da rede.
Isso traz gravíssimas consequências para os três interesses fundadores da Internet. Visto pelo lado da segurança e dos interesses regionais, além de essa concentração ameaçar a robustez da rede, tais serviços tornam atividades sociais, econômicas e políticas de nações inteiras dependentes de sua conectividade com uma outra nação, e vulneráveis aos interesses e afinidades políticas da empresa controladora.
Do ponto de vista acadêmico, tais serviços dificultam a inovação e a investigação de alternativas tecnológicas que não se alinhem com os interesses dos grupos controladores, além de ameaçar a liberdade acadêmica e de expressão de forma mais ampla, ao ferir a autonomia dessas instituições.
Já da perspectiva dos empreendedores, todos se tornam submissos às regras dos monopólios que se sucedem, não encontrando alternativa senão vincular seu empreendimento às estruturas impostas, realimentando o monopólio, fragilizando o mercado como um todo e dificultando a inovação tecnológica e de modelos de negócio, inibindo a competição e impedindo o estabelecimento de uma base tecnológica completa fora dos grandes centros onde os monopólios estão estabelecidos.
Desafios
Do ponto de vista da estrutura física, a principal batalha nesse aspecto é a neutralidade da rede, tema de outro artigo desta edição da revista, no qual o Marco Civil da Internet – ou o que sobrou dele – é discutido.
Restam, contudo, os desafios de camada mais superficial, porém mais direta e, portanto, profundamente ligada ao usuário da rede: a concentração dos serviços nas mãos de duas grandes empresas do Vale do Silício: Google e Facebook.
Essa luta é, em todo sentido, uma continuação das questões que o movimento do Software Livre enfrentou, e em grande parte superou, no universo da computação pessoal. Contudo, as questões se transformaram quando a computação deixou de ser pessoal e passou a ser executada em servidores alheios a qualquer influência do usuário.
Justamente por essa sua relação com a abstração da computação, surgiram duas grandes formas de enfrentá-la em diferentes campos. A primeira admite que certos serviços dependam de servidores alheios, mas o controle sobre esses servidores pode ser reconquistado por meio de novos padrões que reproduzam as funcionalidades dos ambientes centralizados em uma constelação de servidores interoperantes. Esse caminho é inspirado no protocolo de e-mail e traz o nome de serviços federados.
A segunda busca inovar as tecnologias na direção de tornar servidores completamente desnecessários, inspirados nas grandes redes peer-to-peer como o Bittorrent e Bitcoin. Esse é o caminho dos serviços distribuídos.
Os serviços federados já são uma realidade e, assim como o email, são capazes de implementação em larga escala e poderiam substituir os serviços centrais. Protocolos federados como XMPP – antes conhecido como Jabber – foram até mesmo adotados por Google, Facebook e Whatsapp para implementar internamente partes de seus serviços centralizados, como os mecanismos de presença, bate papo e videochamadas.
Para outros recursos, como o compartilhamento de perfis e atualizações, o próprio XMPP chegou a ser estendido para esse fim. Em outras aplicações – como redes sociais – não faltam alternativas federadas para substituir o modelo monolítico, mesmo sem nenhum incentivo econômico e com baixo interesse acadêmico, grupos de ativistas tecnológicos desenvolveram alternativas como RedMatrix, Pump.io e o Diaspora, que vem sendo adotadas por cidadãos preocupados com privacidade, autonomia, colaboração e um mercado aberto.
O que pode ser feito para que os interesses da sociedade e os direitos dos indivíduos precedam a trajetória natural de ganância dessas corporações? Sendo assim, o grande desafio para re-descentralizar a Internet através da federação não é de ordem técnica, mas a total falta de incentivos para uma maior interoperabilidade, num mercado dominado por dois monopólios. O que pode ser feito, para que os interesses da sociedade e os direitos de indivíduos precedam a trajetória natural de ganância dessas corporações?
Após as revelações de Edward Snowden em relação ao abuso dessa centralização, tanto da estrutura física, quanto dos provedores de aplicações, pelo governo e interesses comerciais estadunidenses, houve uma resposta do governo brasileiro. A resposta indicava, por um lado, a aprovação do Marco Civil da Internet e, por outro, uma proposta de trazer para o país os dados dessas grandes empresas.
Consideramos essa resposta – e até agora com a concordância de toda pessoa com uma compreensão razoável dos assuntos que abordamos – pateticamente anacrônica, inócua, ingênua e até mesmo um tanto ridícula. Tal resposta revela um total despreparo e falta de compreensão da questão técnica e jurídica das tecnologias discutidas neste artigo.
Uma solução correta
Uma solução correta para o problema da centralização das aplicações e todas as consequências nefastas advindas disso não é original, nem requer inovação jurídica.
Simplesmente é necessário promover o entendimento de que esses serviços que chegam ao ponto de grandes monopólios têm como função e são, de fato, de serviços de telecomunicação e que, portanto, estão sujeitos às leis nacionais e internacionais, às mesmas exigências de interoperabilidade e definição de padrões a que estão submetidos todos os demais serviços de telecomunicação.
O Facebook não interopera com outras redes federadas, mas não por impecílios técnicos, até porque outras dessas redes já implementaram essa integração e foram ativamente bloqueadas. O objetivo dessa não interoperabilidade é simplesmente bloquear a competição e impedir a ação do mercado.
Isso é completamente equivalente a uma operadora de telefonia não permitir ligações para telefones de outra operadora. Os marcos regulatórios das telecomunicações podem e devem ser interpretados como aplicáveis para esses grandes monopólios de aplicações da Internet.
O Facebook, o Twitter, o Google Plus poderiam ser serviços como email, no qual cada indivíduo é livre para escolher seu servidor. Essa transição só não ocorre por causa dos efeitos da rede, onde não há incentivos para um indivíduo migrar para um serviço que não interopera com aquele utilizado por todos os seus contatos.
Trocar o lugar físico dos servidores dessas empresas não muda em nada essa realidade econômica, assim como não altera o fato de que o controle dos sistemas e dados permanece exclusivamente centralizado em corporações estrangeiras. A manipulação, o abuso da privacidade, a espionagem social, política e econômica continuarão exatamente as mesmas, independentemente do local do globo onde esses servidores estiverem.
A única forma efetiva de abordar a situação, no nível das aplicações, é exigindo a interoperabilidade dessas aplicações nos mesmos moldes de serviços como e-mail e XMPP, e promover o desenvolvimento de softwares livres que permitam ao maior número de organizações e indivíduos oferecerem esses serviços com qualidade para seus membros, clientes, amigos e familiares, retomando assim o controle da sua comunicação e computação.
Além disso, há outras iniciativas importantes para esse fim: inovações às quais não temos acesso pleno devido à dominação desses atores anticompetitivos, como a promoção do uso de criptografia, o conceito de separação entre dados e aplicativos etc.
Infelizmente, não há como crer que um governo como o nosso, contaminado por corrupção até a última pá de cimento do último estádio da Copa, provavelmente para combinar com cada escola em péssimas condições físicas e intelectuais na vizinhança desses estádios, seja capaz de implementar essa solução correta.
Ainda assim, lembremos que a Internet continua erguida sobre fundamentos descentralizados e que, enquanto a neutralidade da rede não for destruída por um Marco Civil cada vez mais distorcido, é factível exercer grandes mudanças na estrutura tecnológica a partir de uma ação coletiva, mesmo contra efeitos de “lock-in” e rede, como ensinaram as vitórias do movimento do Software Livre na computação pessoal.
Apresentamos a seguir algumas iniciativas de descentralização, tanto por aplicações federadas como distribuídas, para você entender, experimentar e juntar-se ao movimento, Re-descentralize!
Inovações Federadas
- RedMatrix: a mais avançada implementação de federação plenamente funcional, baseada na experiência da rede social Friendica, com uma proposta inovadora que, além de autenticação transparente, permite integrar rede social, publicação e aplicativos. http://redmatrix.me/
- MediaGoblin: plataforma de publicação multimídia com suporte para fotos, vídeos, documentos e apresentações, modelos tridimensionais e outros formatos. É uma alternativa descentralizada a serviços como Flickr, YouTube, Slideshare etc. http://mediagoblin.org/
- Pump.io: servidor de ActivityStreams que permite inscrições interoperáveis e pode ser incorporado a outras aplicações ou utilizado para criar novas. É o motor de sites como Identi.ca e o mecanismo de federação do MediaGoblin. http://pump.io/
- Kolab: plataforma de colaboração com email, calendário, agenda e arquivos, com o diferencial de segurança, uma interface web e sincronização entre dispositivos. http://kolab.org/
- Tent: protocolo que permite a separação entre aplicativos e dados, interoperando diferentes servidores de maneira a tornar a federação transparente ao desenvolvedor de aplicativos. Encontra-se em desenvolvimento, mas já com uma implementação em software livre disponível para o desenvolvimento de todo tipo de aplicação, de microblogs à edição de planilhas e documentos. Além de permitir ao usuário a escolha e migração de servidores, prevê a esquematização dos dados para que diferentes aplicativos possam reconhecê-los e manipulá-los. http://tent.io/
- Diaspora: Uma rede social onde usuários de diferentes servidores (pods) podem se comunicar livremente, introduziu o controle de privacidade por aspectos posteriormente replicado no Google+ e Friendica. http://diasporafoundation.org/
- OwnCloud: Sistema de compartilhamento de arquivos que também gerencia contatos e compromissos. Sua instalação é simples e possui aplicativos que permitem estender suas funcionalidades, como adicionar a possibilidade de editar colaborativamente seus documentos. http://owncloud.org/
Inovações Distribuídas
- BitTorrent: o já consagrado sistema distribuído para compartilhamento de arquivos. http://bittorrent.org/
- BitMessage: alternativa distribuída e segura para o comunicador instantâneo, provendo anonimato e ocultamento de metadados, além da encriptação de conteúdos. http://bitmessage.org/
- TeleHash: protocolo para construir uma camada de comunicação segura e distribuída sobre a Internet convencional http://telehash.org/
- Freenet: rede distribuída para publicação de conteúdos, com ênfase no anonimato dos participantes e persistência dos dados, que também pode ser utilizada para outras aplicações. https://freenetproject.org/
- FreedomBox: um completo sistema operacional que repensa os protocolos utilizados na comunicação digital para promover a descentralização e dificultar a vigilância, a censura e a manipulação das informações, focando na promoção do uso de servidores pessoais. http://www.freedomboxfoundation.org/
Por fim, lembramos que, ao lado da descentralização, há também a questão do anonimato, e vale citar aqui alguns projetos que buscam fortalecer o anonimato das comunicações, como Tor (torproject.org), GnuNet (gnunet.org), Freenet (freenetproject.org) e I2P (i2p2.de).
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Eduardo Oda é matemático e hacker. Quando não está imerso na pesquisa do seu pós-doutorado na Universidade de São Paulo, divide seu tempo livre entre hacking, peixes e marcenaria. Membro do Garoa Hacker Clube, da OKF Brasil e da Casa do Desenvolvimento Humano, incentiva e milita pela colaboração, pelos dados abertos e pelo Software Livre. nÉ apaixonado por whisky, cachimbo, Slackware e jeep. oda@member.fsf.org / eduoda@joindiaspora.com (Diaspora)
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