Design & UX

17 mar, 2015

Impacto da tecnologia conectada na sociedade e no comportamento dos indivíduos

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Seis da manhã. No celular, um coro de vozes femininas entoa um animado “Good Morning”. As cortinas se abrem lentamente. Levanto da cama e, assim que meus pés tocam o assoalho, o sistema de áudio sintoniza o canal de notícias. Quando cruzo a porta do banheiro, um suave perfume de jasmim se espalha pelo ar e do chuveiro com led desce uma cascata quentinha e lilás. Enquanto tomo um banho estimulante e programado para 10 minutos, a cafeteira já está trabalhando. Depois de colocar meu agasalho com fones de ouvido embutidos e com minha playlist favorita, além do sistema verificador das funções cardiovasculares, calço o par de tênis que vai coletar dados e analisar a minha performance durante a corridinha diária…

Acabo de descrever uma cena real, ainda que para poucos privilegiados, mas que dá uma pista do impacto da tecnologia conectada na sociedade e no comportamento dos indivíduos (como eu e você, que me lê neste momento). Esse, aliás, foi o tema do Meet Up “UX & IoT”, um encontro com criativos para falar da experiência do usuário (User Experience (UX)) com a Internet das Coisas (Internet of Things (IoT)), que aconteceu no dia 24 de fevereiro, em uma colaboração entre Interaction Design Association- IxDA SPUser Experience Professionals Association – UXPA SP, Interaction Design Foundation – IDF SP e Samsung Ocean Brazil, que contou com a presença e com as provocações do trio Caio Vassão (arquiteto da informação), Luis Leão (editor da iMasters) e Felipe Ratti (designer), com Robson Santos “Interfaceando”, claro.

A tecnologia conectada

A conversa toda começou com uma incrível viagem ao tempo das coisas quando elas eram “apenas” coisas, objetos, artefatos, acessórios, até um futuro já presentificado aqui e ali, no qual essas mesmas coisas são dotadas de uma inteligência preditiva, ou seja, da capacidade de fazer escolhas por nós. E o cerne dessa questão tem tudo a ver com minha vida fronética[1], que é justamente o resultado dessas escolhas.

“Não basta fazer dispositivos autossuficientes”, afirmou Luis Leão, que considera muito melhor fazer as coisas em rede. Estamos falando de uma rede em que objetos se autoidentificam e compartilham recursos entre si sem a intervenção humana.

Caio Vassão, que acertadamente mudou seu status de arquiteto de formação para arquiteto de in-formação e vem ao longo dos anos pesquisando a computação ubíqua e como ela impacta no ambiente humano, se preocupa com a ideia de usar protocolo IP até para objetos não mecânicos, como padrões para endereçar uma simples chave.

O arquiteto lembra que a onda D2D (dispositivo para dispositivo) deve ter em si uma abordagem de design centrado no usuário e alerta para o fato de casas inteligentes – como a que descrevo no começo artigo -, ou qualquer outro sistema instruído por hábitos (isso vale para as bolhas de filtragem do Google) tomarem decisões a partir de instruções erradas.

O que ele quer dizer é: “pare este avião!” (bowl shit!), falando sério: inteligência programada por hábitos que podem ser mal interpretados e que podem resultar numa escolha inadequada, interferindo no nosso relacionamento com pessoas, lugares e coisas, gerando um impacto negativo.

O impacto na sociedade e no comportamento dos indivíduos

Caio reverencia a memória de Mark Weiser, cientista morto em 1999 que usou o termo “Internet das Coisas” pela primeira vez em 1988 e o publicou em 1991 no seu artigo The Computer for the 21st Century (O computador para o século 21). Oito anos depois, em 1999, Kevin Ashton (leia-se “MIT”) propôs o termo, mas só dez anos depois escreveu “A Coisa da Internet das Coisas” para o RFID Journal, aliás, fato muitíssimo bem lembrado também por Leão.

Aqui eu quero trazer o terceiro participante (ele não estava esquecido, não), o Felipe Ratti. Ele confessou: “Hoje eu penso em segurança. Até me envolver em um acidente (automobilístico) grave eu pensava em hardware, hoje penso no intangível”.

Ele aprendeu com sua dramática experiência que, na crise, a tecnologia depende de uma interação nossa. No momento seguinte ao acidente, estava desnorteado e a primeira dificuldade que enfrentou foi a de usar o celular: “ele tem centenas de funcionalidades, mas com as mãos trêmulas e sem enxergar direito, você não consegue usar”. Não consegue sequer raciocinar e, mesmo depois de fazer a ligação de emergência, precisa aguardar o atendimento, relatar um fato e aguardar, aguardar… até chegar a um pronto-socorro e ter de lidar com alguém que vai te obrigar a assinar uma ficha ferido, veja só!

Felipe é categórico:  “há muito protocolo, muito sistema de comunicação, mas cada fabricante faz o seu”, referindo-se, por exemplo, ao fato de as montadoras de automóveis não disponibilizarem os mapas de localização dos air-bags em seus modelos – por conta disto, durante uma atividade na qual um bombeiro trabalha para salvar uma vítima, o dispositivo pode ser acionado e levá-la à morte. E completa: “existem muitos passos antes: precisamos pensar no comportamento das pessoas para depois irmos adiante. Pensar o design do design”.

E reforça a problemática dos wearables: “até que ponto vou estar protegido em função dos meus gostos?”.

Bingo! Estamos falando de Computação Ubíqua + Comportamento Humano + Interações + Vícios do Sistema… E agora, José? Será que essa relação, que partiu de um computador para muitos homens (mainframe), evoluiu para uma relação homem x computador (com os PCs) e agora se espraia como homem x computador em todas as coisas, vamos mesmo emburrecer e deixar de ter experiências novas, como teme Felipe, ao aceitar deixar que as máquinas decidam por nós voluntária ou involuntariamente?

Não seria, talvez, o caso de dar uma acalmada na tecnologia (Calm Technology) e nos reservar o direito de entregar apenas informações úteis ou essenciais (de volta ao conceito de infoessência) dentro de um determinado contexto, no lugar entregar todos os dados como pagamento pelo uso das tecnologias?

A essa altura da conversa, eu já estava em cólicas para perguntar (já que me propus a voltar a escrever sobre tecnologia e mais aprofundadamente pesquisar as de impacto social): “como podemos criar coeficientes de adversidade pensando em cidades futuras e resilientes?”. Sim, porque penso que, se por um lado, “o futuro é construído por nossas decisões diárias, inconstantes e mutáveis […]”, como anteviu Alvin Toffler, por outro, a crise hídrica pela qual passamos, no momento em que este artigo foi escrito, sinaliza uma espécie de efeito dominó: sem água ficamos sem alimento e, sem alimento, sem saúde, mas também sem hospitais em franco atendimento; pior: sem energia e sem mobilidade para chegar a tê-lo. Colapso, caos, Armageddon, qualquer que seja o nome criado para essa coisa, ela avançará como um tsunami na direção de nossas cidades, se não fizermos “para ontem” o dever de casa.

A responsabilidade social dos designers de interação

Caio puxa o ar e olha para o alto antes de responder à minha pergunta, certamente escaneando o seu HD. Para ele, a conectividade (assim como a privacidade em era de Big Data) representa o grande desafio na hora de criar modelos de redes distribuídas pelas cidades.

Em seguida, ele fala de cidades compactas projetadas a partir de comunidades em escalas menores, que vêm surgindo com funcionalidades bem delineadas, com arcos históricos mais amplos e debaixo do mais puro conceito de sustentabilidade: economicamente viáveis, culturalmente aceitas e politicamente corretas.

A resposta, pelo que entendi, pode estar na criação de ecossistemas de efeito borboleta, ou seja, projetar e testar em pequenas escalas, para ver qual o impacto na grande escala – o que em muito me faz lembrar o projeto de construção da Tecnovila Estrela, na região de Glicério, Macaé (RJ), no qual fui convidada a integrar como condômina responsável pela Gestão Estratégica da Informação e provimento de conteúdos (que saudade!).

Nessa mesma direção, a Companhia Elétrica de Minas Gerais – Cemig, está implementando na região de Sete Lagoas o Projeto Cidades do Futuro, por meio do qual pretende aplicar todas as tendências da cadeia de valor das redes inteligentes de energia em suas instalações elétricas.

Na opinião de Caio, este é o momento exato para se discutir a computação como uma das camadas da estrutura urbana (como água, energia, saneamento básico) e além: para discutir os Direitos Humanos, diante da nova onda.

“Tradicionalmente, o Design de Interação era visto como um produto empresarial, e está na hora de enxergá-lo como ‘responsabilidade civil'”, disse Caio, que nos contou que há um movimento global de governança, mas sabe-se que, em geral, quem entende disso não entende lhufas de tecnologia.

Na plateia, mãos espalmadas acenavam “vontade política”, “políticas públicas versus lobby”, “pirâmide das necessidades versus direitos constituídos” e a constituir como “o direito de não fornecer dados pessoais em troca de produtos ou serviços”, entre outras inquietações aplacadas por um misto de resposta e devolutiva crítica: “Se eu puder deixar uma mensagem para hoje, digo que pessoas como vocês têm mais responsabilidade social do que imaginam, pois entre os ‘urbanistas tradicionais’ e os ‘urbanistas do futuro’  está o design de interação.

Mais do que um hostess e um mediador com sacadas bem-humoradas e inteligentes, Robson Santos, nesse ponto da discussão, aborda o papel social do designer com toda proficiência que os títulos acadêmicos lhe conferem: “ele tem ocupado um espaço maior, ascendendo a posições estratégicas. Nosso papel (no qual se inclui) é fortalecer o estado-das-coisas” e conclui: “acreditamos que a humanidade tem sido prejudicada pela má qualidade das interações”.

Ele ainda trouxe à tona a questão da impredictabilidade humana: “por mais que as máquinas tentem mapear as intenções humanas… bem, até que ponto o Deep Blue se divertiu?”, referindo-se à antológica partida contra o campeão enxadrista Garry Kasparov em 1996.

Robson define “designer” como projetista, ou seja, qualquer pessoa envolvida no desenvolvimento de um projeto. Okay, donde concluo que somos todos designers! Para encerrar o evento, ele pediu a cada convidado que dissesse algo que viesse à cabeça, como ponto para reflexão.

Caio disse não ver incompatibilidade entre viabilização financeira e responsabilidade social, quando pensa na distribuição da Internet como um bem público como água e luz. E ainda reforça: “água não dá lucro, e internet dá!”.

Luiz acredita que devemos pensar localmente para agir globalmente, reforçando a ideia de batermos as asas aqui e gerarmos um furacão no outro lado do planeta.

Já Felipe propõe uma reflexão sobre a humanização – querer estar mais perto das pessoas -, o que me faz lembrar que não à toa saltamos do high tech para o high touch…

Lição fronética

Enquanto “designers” de nossos projetos de vida, precisamos entender o princípio hologramático que nos torna parte de tudo, rigorosamente tudo o que acontece. Então, precisamos praticar a Filosofia da Responsabilidade.

Devemos tomar emprestado da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (2006) o lema de Kofi Annan “Nada Sobre Nós Sem Nós”, exigindo nosso envolvimento na concepção das tecnologias – afinal, somos seus usuários finais e principais patrocinadores!

Aprendi que nem mesmo resolvemos nossos problemas de comunicação e já lidamos com dispositivos que pretendem nos entender, interpretar e decidir o que pode ser ou não bom para nós. Então, periga de a gente passar a vida assistindo à media push, com um copo de 600 ml de refrigerante e muito chips, quando podemos desenhar o futuro que queremos ter.

 

[1] Aristóteles define phronesis como sabedoria prática, uma das virtudes intelectuais, aquilo que faz com que o homem seja capaz de deliberar corretamente sobre o que é bom ou mau para si.