Desenvolvimento

26 jun, 2015

Labhacker – a invasão hacker continua

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O numero 506 da Alfredo Maia abriga um espaço difícil de descrever, e é possível que quase todo transeunte que já tenha se aventurado a entrar lá e perguntar o que é aquele lugar tenha saído menos informado do que entrou.

Não somos uma lan house, mas temos uma. Temos também uma biblioteca. Nos dois casos, é difícil explicar que, sim, é de graça. Somos também um ambiente de trabalho colaborativo, um ponto de cultura e muitas outras coisas que às vezes nos perguntam se somos. Tem gente que vem aqui pedir ajuda pra imprimir um currículo, pra arrumar o computador, tem gente que entra só pra saber se temos determinado livro – sem imaginar que os livros ali expostos não são para venda, mas para empréstimo. E outros que entram pra nos oferecer os seus. Fizemos uma parceria com o Pedala Sampa e volta e meia aparece alguém querendo alguma coisa relacionada a bicicletas. Às vezes encontra…

O LabHacker abriu as portas discretamente em 2014 e só aos poucos foi tomando fôlego e agregando a equipe que hoje toca o térreo do prédio da Armênia, facilmente identificável, desde novembro, pela fachada grafitada com uma menina de bicicleta. No espaço acontecem oficinas, hackdays, debates, exibições de filmes, jogatinas, apresentações ou o que mais alguém achar interessante e tiver paciência para fazer. O ponto comum é a ética hacker. O que não é um ponto tão comum assim, convenhamos.

A ética hacker é uma metadefinição. O hacker age no mesmo espaço de disputas em que se encontra, corriqueiramente, o próprio termo “hacker”. A nossa dificuldade em aceitar a pluralidade das coisas e querer defini-las impedem que o hacker, no imaginário popular, seja ao mesmo tempo o perigoso invasor de computadores e o habilidoso resolvedor de problemas. Quando definimos, o limitamos, e ser hacker é contornar as limitações (às vezes só pra descobrir se consegue).

Alguém disse certa vez, muito acertadamente, que o processo de aprendizado do Ônibus Hacker se baseava em “erro, erro, erro, falta de noção, erro” (posso estar deturpando um pouco as palavras, mas, afinal, todas as histórias são verdadeiras).

Como versão menos móvel do ônibus hacker, o LabHacker, sem saber (a maior parte de nós fez o caminho inverso e chegou ao ônibus por meio do Lab), adotou a mesma premissa do seu “irmão mais velho”.

Entender e estender a ética hacker para além da computação foi uma das grandes coisas que aconteceram comigo no Ônibus Hacker: fui (ou sou?) costureiro, pedreiro, professor, jornalista, catador, ativista, DJ, cozinheiro… conheci muito hacker que nunca escreveu uma única linha de código. Enxerguei hackers na família e em diversos círculos de amizade ou de interesses afins. Achei (e provavelmente só porque eu procurava) espaço pra respeitar e valorizar mais pessoas e saberes diferentes dos meus, e gosto de pensar que cresci com isso.

Recentemente, de repente, nos encontrávamos na primeira ação Ônibus + LabHacker, uma invasão na Praça Kantuta, uma praça com Wi-Fi a poucos quilômetros do LabHacker. Tal qual a rua onde estamos instalados, a Kantuta é um tipo de bolsão de baixa renda, menos distante do que as periferias de São Paulo, mas igualmente invisível.

invasao-hacker

Tentamos fazer uma cisterna, “contação” de história, oficina de pipas, tentamos transmitir tudo via streaming pela Internet, lidar gentilmente com “a imprensa”, tentamos fazer uma sessão de cinema ao ar livre. Conseguimos fazer muitas coisas: algumas até do jeito que foi planejado, e outras acidentais.

De volta à base, o desafio de lidar com crianças entusiasmadas com um ambiente aberto com computadores, jogos e um tipo de liberdade a qual eles – mesmo os que passam boa parte do dia na rua – não estão acostumados. Nem nós. Somos um ponto de cultura, somos abertos ao público, subestimamos o esforço que esse “estar aberto” significava para o nosso cotidiano. Erro, erro…

Somos todos hackers aqui e, em alguma medida, ser hacker significa errar até aquele erro não ser mais um erro. Para isso, claro, é preciso errar coisas diferentes. Se essa definição não ficou clara, talvez valha a pena fazer a definição inversa. Não ser hacker significa delegar a uma outra pessoa – potencialmente alguém desconhecido – a tarefa (árdua) de percorrer o caminho por meio do erro até o resultado desejado e, só então, comprar o resultado final do processo.

Há justificativas razoáveis para você fazer as coisas dessa forma, e talvez essa seja a medida do ser hacker de cada um: o quanto você se dispõe a abrir mão da aquisição de conhecimento e da autonomia possível em cada atividade, incluindo aí as mais corriqueiras. Tanto faz se você curte programação, hardware, jogos de tabuleiro, literatura, cinema, gastronomia, moda ou ciências sociais. Tem um jeito hacker de fazer isso.

Ao contrário do que pode parecer, esse processo de produção de conhecimento não é exatamente fácil. Não é mais fácil que a produção acadêmica, nem mais difícil. Não precisa ser. Não é essa a medida que nos faz escolher esse jeito de fazer as coisas. Queremos o conhecimento livre, e sabemos que “livre” significa uma coisa para cada um. Lidar com as próprias frustrações faz parte, tanto (e talvez seja mesmo algo umbilicalmente ligado) quanto conseguir se divertir no processo.

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Texto publicado originalmente na Revista iMasters.