DevSecOps

9 jan, 2017

Liderança natural e situacional em times ágeis avançados

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Num longínquo 2009, iniciei uma jornada sem volta ao mundo das metodologias e pensamentos sobre agilidade numa recém criada startup por mim e meus sócios malucos. Nosso sonho, além de fazer dar certo, era desenvolver software de qualidade, mas colocando as pessoas acima dos processos. Afinal, elas fazem o software e, quando você tem um time forte e tunado, as coisas acontecem muito mais facilmente.

Para começar, escolhemos o Scrum: ele era fácil, legal, sexy e tinha um monte de pessoas (amigos e outras empresas bem maiores que as nossas) pra gente perguntar e discutir. Nesse contexto, parte dessa responsabilidade de trabalhar as pessoas recairá sobre os Scrum Masters (que vou chamar de SM daqui pra frente) dos times, que, coincidentemente, no começo eram nós mesmos.

Assim, depois de alguns anos praticando o Scrum, nos deparamos com uma cena que ficou comum: o SM gastou bastante tempo trabalhando em seu time e depois de várias cerimônias, puxões de orelha, repetições de processo, sprints entregues e afins, ele começa a se perguntar “Cara, o que eu tô fazendo aqui?”.

Quando falamos (e lemos) sobre times auto gerenciáveis e auto organizáveis, pairamos nossa contemplação imaginando um cenário onde o time tem autonomia, poder de decisão sobre o que deve ser feito e como deve ser feito quando lhe é entregue uma tarefa e pratiquem o ciclo de inspeção-adaptação conforme as dificuldades e oportunidades se mostrem durante o dia-a-dia.

É comum em times iniciantes enxergar o SM como uma espécie de líder: ele trabalha como um facilitador, trabalha para manter o time na linha, remove impedimentos, dá aquela força pra convencer o PO de que aquela ideia não é tão legal assim… É a figura que ajuda o time em decisões difíceis, que é porto seguro para as questões sobre a vida, o Universo e tudo mais.

Muitas vezes, o SM é o cara mais experiente do time. É aquela figura que quando fala, todos olham, respeitam e seguem suas vidas. No início, reparamos que eles eram quase sempre os mais experientes do time mesmo. Porém, em certo ponto, o SM fez seu trabalho tão bem que os times começam a resolver seus próprios problemas sozinhos. Eles já têm o “Scrum” e conceitos ágeis em suas veias, se comportam como um verdadeiro time ágil e alcançam aquele estado de graça onde um SM se torna mais um guia espiritual do que alguém que precisa lembrá-los de respeitar a timebox, fazer as cerimônias na hora certa e geralmente recorrem a ele como um apoio à resolução de conflitos e impedimentos.

O que fazer, então, quando os times chegaram em um nível sublime de entendimento de agilidade que todos os membros poderiam facilmente ser SMs de seu próprio time?

A liderança natural

A primeira coisa que notei nos times ágeis quando eles se tornam altamente eficientes é que alguns fazem líderes naturais emergirem, empurrados pela cultura (em forma de processos, papéis, responsabilidades e rituais) e pelo clima de respeito <-> confiança que surge apenas quando um grande ciclo de aprendizagem, porradeiros e acordos aconteceu e se resolveu.

Esses líderes naturais substituem quase que totalmente o papel do SM no time, assumindo (por assimilação do que o SM fazia ou aprendizado e experiências de vida próprias) um papel de facilitador e aconselhador.

Não exatamente a pessoa mais experiente, o líder natural surge por uma série de motivos e rituais quase tribalistas dos times e suas diferentes crenças, valores e objetivos. Independente dos projetos, os líderes naturais carregam junto a si a chave para abrir as portas entre o mundo de projetos lá fora e a ordem interna do time.

Ele acaba virando o vetor principal de disseminação do propósito da empresa, do “porque” das coisas e principalmente do moral do time em tempos difíceis: seja em entregas ruins, seja em momentos de crise. O líder natural encarna e veste-se de todo o significado e verdades do time que ele lidera e, ao mesmo tempo, o fez liderar.

Não se pode confundir, porém, que o líder natural seja em todos os momentos uma dádiva, poupando o trabalho de um SM. Como qualquer líder, seu julgamento acaba quase sempre por ser final ou influenciador dos demais membros do grupo.

Se por um lado um SM tem (ou deveria ter) um papel imparcial e que joga com os dois lados de um mesmo projeto, mediando e resolvendo conflitos, o líder pode tender a defender os interesses do seu grupo, seja por interesses próprios, seja pelo medo de se sentir rejeitado de alguma maneira por seu grupo por estar traindo seus princípios e valores.

Todavia, num acompanhamento pessoal empírico, o surgimento de líderes naturais foi mais benéfico que prejudicial. Em quase todas as situações, não apenas em nossa empresa mas em outros lugares, pude notar que quase sempre o líder era alguém que entendia a importância e premissas de um bom negociador. Seu sentido de justiça e liderança prevaleciam e raramente se notava algum tipo de individualidade acima do senso comum.

Nota sobre o líder não natural

É preciso lembrar que impor uma pessoa (até mesmo uma do próprio grupo) como um novo “líder” fracassa miseravelmente quando esse time já passou por todas as fases de amadurecimento e deixou de pensar em hierarquias para pensar em papéis. A liderança informal cria uma sensação igualitária e de liberdade ao passo que a formalidade impede o grupo de expressar e fazer prevalecer seus costumes.

Notei que sempre que alguma pessoa mais experiente, e nova na empresa, era inserida no grupo, num movimento velado ou explícito de “ele está entrando pra ser o líder do grupo”, ela enfrentava uma resistência interna invisível que era notada apenas nas entrelinhas e/ou manifestações interpessoais fora do reino do projeto. Isso independente de ser uma pessoa legal ou não.

A aderência era bem mais suave quando esse novo membro apenas fazia parte do grupo e o próprio time o reconhecia como um líder ou alguém que poderia liderar em algum momento, deixando o pertencimento atingir todos do grupo de forma igual.

O líder precisa emergir do grupo, alçado pelo mesmo ao status de líder. O grupo por muitas vezes não o faz formalmente mas todos o que se relacionam com ele percebe e sente essa posição definida. Tudo fora do grupo acessa naturalmente o grupo pelo líder.

A liderança causal e situacional

Se você está num churrasco e alguém se prontifica para acender uma churrasqueira, todos se voltam para essa pessoa e oferecem atenção ou ajuda: “Ele é O cara para acender churrasqueiras”. Churrasqueira acesa, é hora de cuidar das carnes: outra pessoa assume o comando do churrasco e todos acabam dando atenção ou ajuda: “Rapaz, a picanha que ele prepara é sensacional”.

A situação desse churrasco ilustra bem o que acontece quando um time não tem apenas um líder natural mas um time de pessoas com expertises tão profundas e respeito/confiança tão arraigados que o ciclo de inspeçao->adaptação é tão recorrente, rápido e transparente que o time pratica a liderança causal e situacional a todo momento. Você lembrou de alguém que quando vai nos seus churrascos sempre fica cuida da churrasqueira porque todo mundo sabe que ele vai fazer o melhor churrasco possível?

Tal qual os GI-JOE, a galera do Capitão Planeta (entreguei minha idade aqui) e os meninos da Caverna do Dragão, esses grupos têm pessoas com poderes e funções diferentes. Um time experiente aproveita cada membro como um líder para alcançar seus objetivos de acordo com o problema encontrado.

Esse é um estágio de auto-conhecimento e respeito mútuo profundos onde os times passam a se adaptar muito rapidamente aos problemas e o nível de medo cai quase a zero quando alguém faz uma proposta: eles já sabem que se fulano falou que a tarefa X é complexa e demanda tempo é porque ela realmente é complexa.

Duas características marcantes que vi nesses tipos de grupo foi a quantidade reduzida de pessoas nos times e um constante uso de técnicas ágeis que primam e fazem funcionar as relações interpessoais mais que a execução de tarefas.

O número reduzido de pessoas permite que a comunicação seja rápida, concentrada e os acordos sejam feitos com muito menos divergências. A raridade das divergências criou um clima de “se ele tá dizendo, está dito”, pois quase sempre o grupo sabia como o outro iria reagir. Em grupos maiores, a matiz de perspectivas é muito maior. Ao contrário de um time com um líder natural apenas, que trabalha como um facilitador/conciliador dos interesses de um grupo, um time com líderes situacionais preocupava-se mais em ouvir o “especialista” do time dizer algo, fazer suas ponderações e seguir com o plano.

Esse comportamento é altamente reforçado e nutrido por técnicas como o pair programming, que aproxima as pessoas não apenas num nível técnico mas, acredito e defendo como mais importante, interpessoal. As pessoas juntas não discutem apenas códigos e melhores arquiteturas, mas aproximam suas essências ao cuidar de um dos maiores orgulhos de um desenvolvedor: seu código. É como se duas pessoas pintassem um mesmo quadro, acordando entre si qual cor ou técnica deve ser aplicada em cada centímetro da obra.

A figura do líder natural se dissolve nos papéis e especialidades de cada um do time, fazendo que cada um tome as rédeas da situação conforme o problema se desenha nos moldes de sua especialidade.

E o Scrum Master?

Mesmo com a(s) liderança(s) trabalhando fortemente e resolvendo (quase) todos os problemas do time, o papel do SM, na minha opinião, é essencial.

Embora o time consiga se resolver e resolver seus problemas, ele deve (ou deveria) se preocupar no principal: gerar valor.

O SM agora, muito menos demandado em questões já consideradas simples, pode voltar sua atenção à organização e ajudar os times num âmbito muito mais amplo: como ele pode ajudar agora em tudo que acontece antes mesmo das histórias chegarem no backlog? E como ele pode ajudar em tudo que acontece depois que o código foi entregue?

E mais: lembra-se daquele monte de coisas da retrospectiva que o time pontuou e não está andando? Que tal dar uma limpa nelas?

Conclusão

Quanto mais auto-organizável e auto-gerenciável forem seus times, mais tempo o SM terá para canalizar sua energia para questões que podem ajudar o time direta ou indiretamente no seu trabalho de desenvolver software mais eficientemente, com qualidade não apenas de código, mas de vida.

Antes disso, é importante criar o ambiente propício pra que os times elejam seus próprios líderes e futuramente sejam eles todos líderes situacionais em tempo real.

Duas boas leituras para entender como times são formados e como criar o melhor ambiente para que eles sejam auto-(suficientes|organizáveis) são o Modelo de Tuckman, que descreve a formação de pequenos grupos até que eles estejam tão tunados, que a necessidade de supervisão é minima (é onde o SM geralmente deixa o time andar sozinho) e o livro The Five Dysfunctions of a Team do Patrick Lencioni, que conta uma história sobre liderança e revela como resolver as 5 principais disfunções de um time para torná-lo um time eficiente.

Aproveite pra ler um pouco sobre cultura num outro artigo que escrevi chamado Cultura > Times > Pessoas > Processos.

Hey Ho e “O poder é de vocês!